20 centavos na terra de Horácio Hora

A moça andava a esmo querendo fixar a ruela na memória. Casas pequenas caiadas de claro faiscando no sol áspero da manhã alta: São Cristóvão. Nome bonito, como a cidade. Construída no topo do morro para poder avistar longe, ao redor. Já tinha estado no museu, coberto de cima a baixo pela presença de Horácio Hora, pintor sergipano muito interessante do final do século XIX, nascido ali perto, em Laranjeiras, artista quase desconhecido por causa da insistência de se olhar mais para fora do que para dentro do Brasil. Feito boa provisão de cocadas no endereço onde tudo estava disposto para o comércio com os de fora: das sacolinhas de plástico às cadeiras austríacas enfileiradas ao longo da parede. Conhecido o orfanato das irmãs – só para meninas –, passarinhas rodopiando em torno cheias de afeto e perguntas. Vontade de levar todas embora e ser mãe de todas, como elas também queriam. Saiu com o coração apertado. Separou-se dos outros que visitavam do mesmo jeito, comprando doces para a viagem de volta e foi andar sozinha. Cabeça, como sempre, nas nuvens, nem atentou para a figura de estrangeira contra o fundo pobre das muretas e dos portõezinhos baixos: cabelo, pele, movimentos, roupa… Tudo… Não se dava conta e seguia ocupando os olhos sem perceber as pessoas vendo – nítida – a passagem dela.

– Moça, a senhora me dá 20 centavos? – uma vozinha ansiosa puxou-a de volta. Era um menino lindo, miúdo, olhos grandes comprometidos com alguma coisa maior que ele. Descalço, torsinho nu, em pé no meio-fio e expressão tão extraordinária como talvez algum dia possa ter tido um anjo, no tempo em que os anjos eram frágeis e feitos de luz. Durante um naco de segundo a moça temeu desintegrar. Em vez disso, sempre andando, abriu a carteira tirou dez reais e estendeu para o menino.

Quase sufocado, controlando o sobressalto de forma comovente, ele perguntou de novo apertando o passo para ir no ritmo da moça:

– A senhora pode trocar por duas que fiquem iguais a essa pra eu dar uma pro meu primo? – e pôs a nota de volta na mão da moça. Então ela divisou outro menino, em torno dos mesmos oito anos, cabelo escuro, também sem sapato, sem camisa e nem a mesma doçura determinada, olhando para ela do lado oposto da rua, rente ao correr de casas. Tirou mais dez reais, deu para o primo, devolveu para o menino a nota que já era dele e, acelerando a caminhada, despencou peito adentro.

– A senhora é boa! – insistiu o menino, voltando a trotar miudinho para seguir as passadas largas. – Vou entregar pra mãe!

Trazendo o pensamento de volta para o lugar, a moça deu com o menino quase correndo ao lado dela, feição contorcida no esforço de reter a lágrima e o espanto. Abriu a bolsa de
novo, esticou outras duas notas de dez, desentranhando um sorriso mole e uma frase convencional qualquer para impedir que o sentimento a estatelasse de vez. E continuou na carreira porque não queria que o menino visse o choro descendo. Mas ele a alcançou e, o que disse, a moça não ouviu. Entre os dois se estendera uma agonia espessa que abafava o som, desfocando tudo. Ficaram bom tempo assim olhando um para o outro sem dizer palavra, naquele encontro insólito embaixo do sol duro, na cidadinha nordestina. Poucas horas depois ela foi embora. Se aquela mãe era de verdade ou de mentira não iria saber nunca e nem tinha importância. E se a lágrima era encenada, repetida a cada encontro com alguém de fora, menos ainda.

Ela voltou para o lugar de onde tinha vindo e o menino ficou entregue sabe-se lá a qual destino. Não deve ter durado nada na lembrança dele, tantas e tão duras serão as provas que terá tido que enfrentar todos os dias: já deve estar um homem. Continuará vivo? E a mãe? E pai? Será que esse menino algum dia teve pai?

Anos passados e, dentro da moça, o menino continua em pezinho, firme ao lado do meio-fio, vivo e preciso como quando brotou sem que ela se desse conta de onde. Porque não é decente alguém ter que pedir 20 centavos. E porque a moça nunca vira aquilo numa criança: dividir sem hesitação o pouco que tinha ganho e, emborcado na pobreza, pensar no outro com empenho igual ao que pensava em si.

Leia também

O site da Ouro Sobre Azul utiliza cookies e tecnologias semelhantes para ajudar a oferecer uma experiência de uso mais rica e interessante.