A ostra e o livro

A edição de livros impressos e o design gráfico, exercidos simultaneamente pela mesma pessoa, permitem o controle, por um indivíduo apenas, do processo no qual o produto é conceituado em seus vários planos e posto ao alcance do leitor. Além disso, o livro impresso fornece ao designer meios para situá-lo profissionalmente na contracorrente dessa obsessão com a venda, finalidade inelutável dos mercados competitivos do mundo contemporâneo. Obsessão que desviou o design do curso traçado nas primeiras décadas do século XX, deslocando o eixo em torno do qual organizava sua prática e seus objetivos: em lugar do compromisso com a quali­dade do produto e com o respeito ao usuário, pede-se agora ao designer que se empenhe em soluções de retorno financeiro rápido. Nesse quadro o livro impresso se mantém como um produto industrial que ainda conserva o campo aberto a ações de projeto estimulantes, apoia­das na sólida tradição da tipografia e, em direção oposta, no progresso contínuo da tecnologia gráfica.

De fato, o livro impresso talvez seja dos mais extraordinários objetos jamais concebidos pelo homem tanto no que se refere à estrutura física quanto ao potencial transformador. Pequeno, portátil, livre da necessidade da reposição de peças, resistente a quedas e manuseio, barato, se comparado a produtos congêneres – revistas, filmes, novelas e seriados de televisão, por exemplo –, sua trajetória segue firme desde fins do século XV, quando Gutemberg abriu o caminho para libertá-lo dos estreitos círculos dos aristocratas, da Igreja e da burguesia, que dominavam os jogos do poder na Europa, naquele período.

De signo de prestígio, cheio de iluminuras e requintes como aplicações de ouro em pó e incrustação de pedras preciosas nas encadernações feitas com as melhores e mais bem curtidas peles animais disponíveis, o livro impresso veio cortando seus aparatos até chegar à forma atual em capa mole ou dura, tendo ampliado seu arco de comunicação, distinguindo-se – pela racionalidade e recursos – dos incontáveis sistemas de geringonças que nos cercam, concebidos para o consumo frenético e fruição reite­rativa. Isso, graças à carga de informação que pode encerrar em sua simplíssima anatomia: um conjunto de lâminas sequentes, leves e finas, protegidas por duas outras mais espessas ligadas entre si pela lombada, segmento para onde todas convergem, dedicadas guardiãs dos universos infindáveis da imaginação criadora.

A tarefa do designer/editor é conferir qualidade a esse objeto ímpar – qualidade cultu­ral,­ estética e ergonômica – resolvendo as questões postas pelas etapas de edição, projeto gráfico, fabricação e oferta do produto ao público.

À diferença do operário de Chaplin, em Tempos modernos, alienado na extensão do gesto com que servia a uma realidade constritiva, o designer/editor – para permane­cermos no campo do livro impresso – domina o processo do princípio ao fim mantendo sob seu comando as iniciativas indispensáveis à coesão do produto. Assim, decide o teor do texto que irá trazer a público, escolhe para as etapas de editoração, design e impressão os colabo­radores que, no seu modo de ver, melhor atendem aos objetivos da edição e, finalmente, encaminha o produto para o leitor, fechando a cadeia e mantendo esse conjunto de operações sob controle. Nisso é apoiado pela metodologia de seu setor profissional de origem, que ensina a submeter o projeto às características dos meios para reprodução de matrizes, adequadas aos recursos financeiros disponíveis e à análise do ambiente em que o produto irá cumprir seu destino: o encontro com o leitor. A vivência diária dessa sequência fornece o treino necessário ao domínio de todas as fases do processo, conferindo ao designer/editor uma visão abrangente do conjunto e dados sólidos para tomar suas decisões.

Seguindo nessa valorização do livro impresso tentemos uma pequena digressão.

Tanto em design quanto em arquitetura o projetista não costuma ter controle sobre os ambientes em que o resultado de seu trabalho irá atuar. Um edifício de bom traçado pode ser erguido próximo a outro sem nenhuma expressão que lhe embaça a presença; uma cadeira elegante e sóbria pode vir a mobiliar um ambiente espalhafatoso com o qual não tem nenhum diálogo. Em ambos os casos as intenções do projetista são contaminadas por imposições alheias à sua vontade, interferindo de maneira negativa no sentido buscado originalmente pelo projeto.

Coisa parecida ocorre com o miolo de revistas e jornais. Mesmo quando possui um bom projeto gráfico, esse tipo de impresso costuma se fragmentar por causa das interrupções provocadas pelos espaços vendidos à publicidade, que interferem no encadeamento da leitura e na sequência da informação.

O livro impresso, graças a uma anatomia particular e à nitidez de seus propósitos, não é assaltado por variáveis dessa natureza. Sendo um universo autônomo está imune a invasões, em seu miolo, e a ingerências espaciais como as que podem ocorrer no âmbito da arquitetura. De tal forma que, se for esquecido perto dele um guarda-chuva, um casaco ou mesmo se o puserem embaixo de um sofá, não terá, nem num caso nem noutro, a unidade atingida ou o sentido abalado. As funções que o caracterizam permanecerão íntegras, não importando o tempo em que ficar embaixo do sofá, que o guarda-chuva ou o casaco estiverem próxi­mos dele: continuará sendo um objeto quadrático dotado de revestimento resistente para proteção de um conjunto de lâminas dispostas em sequência, nas quais estarão depositados, por algum processo reprodutivo, grande quantidade de informação pronta para ser assimilada bastando, para isso, que seja lida.

Noutra hipótese, se vários livros impressos forem empilhados em quatro colunas idênticas de cerca de 50 cm de altura e cobertas por um tampo qualquer, o resultado pode ser um móvel baixo, fruto do improviso. No entanto, mesmo com a função alterada por um uso não previsto por quem cuidou de trazê-los à vida, os livros das quatro colunas não deixa­rão­ de reter suas propriedades originais, mantendo intactos o sentido e as intenções iniciais, imediatamente recuperados assim que as pilhas forem desfeitas e alguém começar a folheá-los e a lê-los. Porque, como a ostra, o livro pode esconder um tesouro dentro de si e o contexto no qual se encontra não interfere em sua integridade e significado, já que uma e outro se reali­zam apenas a partir das iniciativas do manuseio e da leitura.

Como consequência, esse extraordinário objeto tem permanecido, através dos tempos, um campo privilegiado de trabalho para todo editor comprometido com a difusão do conhecimento, para qualquer designer que preze a condição de autor.

Leia também

O site da Ouro Sobre Azul utiliza cookies e tecnologias semelhantes para ajudar a oferecer uma experiência de uso mais rica e interessante.