Dois homens, duas casas

Durante alguns anos alimentei a ideia de fazer da correspondência de Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade um livro ilustrado, no qual texto e imagem se combinassem num discurso único mostrando a riqueza humana dessa amizade, apoiada por um conjunto de fotografias que completasse o teor das cartas. A edição revelaria a escrita epistolar notável de Pio Lourenço Corrêa trazendo a público uma personalidade originalíssima, desconhecida do leitor brasileiro fora do âmbito da região de Araraquara e de algumas publicações especializadas em linguística, matéria em que Pio era autodidata de muito nível.

Todos sabíamos, lá em casa, que minha mãe, escritora vagarosa e perfeccionista, estava, havia anos, às voltas com esse material escrevendo um texto para introduzir as cartas no qual ela se concentrava no tema do pai substituto, na ideia de que Pio Lourenço teria sido, para Mário, o pai que lhe faltou porque absolutamente apartado de seus interesses e maneira de ser: Mário e Carlos Augusto de Andrade nunca tiveram uma relação fácil e isso amargurou o escritor por toda a vida.
Então vendo minha mãe naquele empenho, eu vivia pedindo que terminasse o trabalho logo para que a Ouro sobre Azul pudesse fazer com a correspondência – guardada em duas ou três caixas no escritório dela, embaixo da mesinha da televisão – um livro em que texto e imagem atuassem em pé de igualdade na costura do discurso. Porque as cartas escritas por Mário a Pio Lourenço, no decorrer da vida, foram deixadas por este a meu pai, de quem Pio também foi grande amigo. E as cartas de Pio a Mário, por sua vez, minha mãe pediu emprestado ao primo Carlos Augusto de Andrade Camargo, sobrinho de Mário, representante legal de seus herdeiros, que as mandou de presente num gesto de grande generosidade.
No período em que minha mãe esteve lidando com esse material, ela chegou a armar uma espécie de álbum despretensioso com cópias de umas poucas fotos integrantes da extraordinária coleção que ela e meu pai tinham herdado de Pio, também depositadas num canto da casa deles. A intenção deve ter sido armar um roteiro para o livro que talvez estivesse esboçando mentalmente.

A olhos treinados pelo design gráfico, a sequência de fotos de minha mãe surgia um tanto descosida embora se conseguisse compreender a intenção: fazer com que tanto a introdução quanto a correspondência fossem recheados de imagens, como já havía­mos feito juntas num trabalho anterior, O espírito das roupas, livro de autoria dela onde a imagem tinha papel central. Infelizmente minha mãe acabou adoecendo antes que pudéssemos ter começado mais essa parceria, vindo a morrer no fim de 2005.

Então, depois do livro pronto, eu ficava me perguntando até que ponto Pio & Mário, diálogo da vida inteira – publicado em coedição pela Editora SESC SP e pela Ouro sobre Azul, em 2009 – seria como acabou ficando se ela estivesse aqui e tivéssemos podido trabalhar, de novo, juntas. De qualquer forma me parece que a intenção básica de minha mãe se preservou na medida em que a Ouro sobre Azul trouxe a público o diálogo de duas personalidades extraordinárias, desses dois homens originais cujas marcas, como procuro mostrar aqui, ficaram impressas nas casas em que moraram a maior parte da vida.

A Chácara da Sapucaia onde Pio Lourenço viveu com a mulher, Zulmira, por 60 anos – de 1897 a 1957–, era um acontecimento. O espaço, dentro e fora da casa, repetia a especialíssima singularidade do dono. No pomar todo cercado onde se entrava por um portãozinho estreito, havia de tudo. Jabuticabeiras enfileiradas em intervalos uniformes, água correndo sem interrupção no sulco em torno delas para assegurar florada e frutas em ocasiões regulares, cada qual com sua torneirinha de ferro: sabará, casca fininha; coroada, uma folhagem delicada em volta do caule; do mato, grandona, pele grossa, e tantas quantas existissem. Pés de lima-da-pérsia, nêspera, mamão, carambola, goiaba – da branca e da vermelha –, pêssego, figo, tangerina, abiu, pera, uvaia, cambucá, jambo, pitanga, gabiroba, caju, laranja-da-terra, cidra, manga, plantados em função do doce em calda que Pio não dispensava, num chão de terra batida meticulosamente varrido mais parecendo um salão de festas.

Ao lado da casa ficava um laguinho com peixes coloridos e plantas aquáticas, um pouco mais adiante havia um paiol limpíssimo – onde jamais deve ter entrado um rato sequer – e o misterioso orquidário segregado entre telas, cheio daquelas flores frágeis, frisadas a tiotê, nas quais não se podia tocar senão morriam. As cercas eram esticadas nos seus mourões, os mata-burros impecáveis, as porteiras tinham tramelas que deslizavam macias, abrindo e fechando sem enguiçar jamais.

Diante de tanto controle, as crianças da família ficavam comparando a olímpica regularidade da chácara com o universo bem menos perfeito da fazenda dos avós – onde costumavam passar as férias – e não gostavam nada quando, sempre obrigadas, tinham que acompanhá-los nas visitas. Porque aquela organização toda impunha uma compostura a que a energia delas se prestava mal. Mas quando era para ir, tinham que ir e estava acabado. Então ficavam tentando se integrar de alguma maneira naquele mundo passado a limpo onde nada fora previsto para elas nem para as crianças que o casal jamais teve. Pio ficara estéril depois de uma orquite de juventude, conveniente para o ajuste conjugal. Zulmira mancava da perna direita. Uma ama de leite a derrubara em pequena deixando-a com uma descompensação na bacia que aumentava a cada ano: teria ido embora no primeiro parto. Um marido estéril era garantia de vida longa e tranquila, como de fato tiveram.

A casa era linda. Provavelmente feita a partir dessas plantas inglesas detalhadíssimas que, no começo do século passado, exportavam um pouco do estilo de vida inglês para o resto do mundo. Grande, cômodos espaçosos, toda de tijolinhos com um terraço encantador tomando parte da fachada e protegido, como as janelas, por tramas de arame contra os insetos. Do terraço a vista era estupenda. Para além da disposição ordenada dos vários setores da chácara desdobravam-se os horizontes ondulados de Araraquara antes da cana ter tomado conta deles. Nenhuma construção interferindo no arco do olhar: apenas a harmonia verde dos retalhos vegetais. E lá longe, mal dando para divisar, uma estrada onde, de vez em quando, deslizava um caminhão ou um carro de passeio reduzidíssimos pela distância, movendo-se como brinquedinhos de corda silenciosos. Vasos suspensos de avencas com mil folhas intervinham no delicado compromisso dos ocres firmado entre as paredes e as cadeiras de vime.

Dentro o mesmo gosto sóbrio. Um salão imenso com o escritório à direita da porta de entrada, a copa à esquerda e, depois, a cozinha, imensa também. Hall interno, dois quartos e dois banheiros. Tudo em um chão de tábuas lavadas nos cômodos sem tapetes nem cortinas servidos por móveis de muito bom desenho: apenas objetos bonitos. Os banheiros tinham vindo completos da Inglaterra com pias e banheiras descomunais mais ferragens perfeitas. A geladeira era dessas de restaurante, tal o tamanho. Corpo de madeira e, como quase tudo naquele tempo, também tinha vindo da Europa. Fogão a lenha de uma chapa só para manter a uniformidade do calor, onde só se queimava madeira de lei – bálsamo, de preferência – e onde bruniam os puxadores de latão, na porta do forno, destacados contra a superfície opaca da estrutura principal. Nas paredes do escritório, orquídeas de Papff e óleos de Hilda e Quirino Campofiorito. Ainda, enfeitando, a coruja de louça oriental com luz por dentro: acesa, ficava inteirinha rosada com os olhos cor de âmbar vivo. Cadeiras Tonet, clarinhas, de desenho tão raro que as crianças, mesmo depois de adultas, nunca mais veriam iguais. Pé-direito e porão altíssimos, a casa estava sempre fresca até no auge do calor exalando um cheiro doce de ervas secas, talvez, e da limpeza meticulosa de todos os dias. Como tudo o que era de tio Pio, o cheiro da casa era particular e os meninos também não sentiriam outro assim.

Os horários do casal eram pautados pelos costumes rústicos da São Paulo agrária. Café da manhã às cinco, almoço às nove, jantar às três. O chá era servido às oito e, em torno das nove, ambos iam dormir.

De trás para a frente, no tempo, foi se dando a recuperação desse tio e de seu universo particularíssimo. Dos gostos, histórias, preferências. Da extraordinária capacidade de compor os espaços. Tinha esse dom, naquele tempo raro na província, milagrosamente desenvolvido num ambiente em tudo e por tudo hostil ao cultivo da sensibilidade. Fazendeiro mais por herança que por vocação, filho, neto e bisneto de proprietários rurais das regiões de Porto Feliz, Tietê e Araraquara, fora por certo tempo comissário de café em Santos, tendo desfeito o negócio por não concordar com os métodos de dois dos três sócios, despidos do rigor previsto em sua ética estrita.

Conta-se que certa vez, exprimindo o brio típico dele, reagiu irritado a um conhecido que comentava, reverente, o barulho feito em torno da passagem do rei Alberto, da Bélgica, pelo Brasil, em 1920:

– Sempre tratei esses reis muito de resto!

Ele era assim. Detinha-se no que o faro apurasse como valioso, fosse qual fosse a origem. Rejeitava o que lhe parecia ralo de interesse ou fundamento, mesmo quando ungido pela norma de sua classe ou camuflado entre as fibras da convenção.
Com a morte de Pio as propriedades que ainda estavam com ele se fragmentaram na mão dos herdeiros. Livros e documentos foram encaminhados a uma biblioteca pública, objetos divididos ao sabor do gosto, interesses e preferências de cada sobrinho. E assim, esgarçados os traços da existência material, não restou a Pio Lourenço Corrêa senão a alternativa de se alojar na memória de quem gostava dele. Nítido e altivo, como sempre viveu.
A outra casa, onde Mário morou de 1921 a 1945, na Rua Lopes Chaves, em São Paulo, era completamente diferente e não tinha a mesma unidade de estilo da Chácara da Sapucaia. Ao contrário, abrigava dois mundos distintos: um, convencional, ajustado aos parentes com quem Mário morava, outro absolutamente vanguardista, à frente de seu tempo, composto a partir do andar de cima, do quartinho em ele que dormia e do salão conjugado a esse quartinho que lhe servia de escritório.

De esquina, com dois andares mais um porão cheio de guardados surpreendentes, a casa era antecedida por um jardinzinho muito ordenado ligando-a, sem muro de separação, à outra, geminada, onde moravam Carlos, o irmão mais velho de Mário e a mulher, Celeste.

O quintal, inteiramente cimentado – único espaço da casa sem nenhum interesse – era acessível de três maneiras: pela escada que descia da cozinha dando nele, por uma abertura no porão e por outra entrada dando na rua perpendicular à Lopes Chaves, a partir de um acesso previsto para o automóvel que nunca se deu a ver.

O jardinzinho, na frente da casa, dava na varanda graciosa, pequena, com piso de ladrilho hidráulico, desenhos bonitos, preto e vários tons entre o cinza esverdeado e o cor de areia. Chegava-se nele subindo dois ou três degraus de uma escada curta que terminava entre duas colunas baixas, claras, saudando quem chegasse da rua e separando bem o que estaria dentro e o que deveria ficar do lado de fora.

O terraço dava no hall de entrada com dois móveis iguais, um de cada lado, feitos de madeira escura e sob medida para se encaixar exatamente nos vãos destinados a eles, espaços para toda a sorte de objetos intermediários entre a casa e a rua: guarda-chuvas, bengalas, chapéus, capas, bolsas, guarda-pós…

Bem em frente ao hall se abria a porta para a copa, a cozinha, um banheirinho – pisos de ladrilho hidráulico, também – e o quarto dos fundos onde as mulheres da casa passavam boa parte de seu dia em torno de uma mesa grande, em geral entretidas com algum trabalho de agulha: tricô, crochê, costura, bordado… Para se chegar à copa, vindo da rua, era preciso varar uma linha reta passando pelo amplo espaço de distribuição sobre piso de tábuas corridas, no qual desembocava muita coisa: escada de dois lances que levava ao andar de cima; sala de jantar e saleta com o piano velho porque o novo, de cauda, ficava na sala de visitas. Para este espaço de distribuição também se abria o escritório de Eduardo Camargo – casado com Lourdes, irmã de Mário – e pouco à frente da porta deste escritório uma escadinha de madeira, linda, linda, descia até o porão.

Durante a minha infância, na casa da Rua Lopes Chaves, Mário já morto havia muitos anos, criança podia batucar à vontade no piano velho. No outro, o da sala de visitas, não. Porque desafinava o instrumento onde Mário tinha tocado e tocavam também os três primos, a Thereza, o Cau e a Isa, todos craques, principalmente o Cau. Então a lembrança da casa se mistura ao som permanente do piano porque tinha sempre um dos primos praticando: Chopin, Debussy, Liszt, os exercícios de Czerny…

Nesse período, além do piano e da extraordinária afabilidade dos parentes – o casal, os três filhos, mais Carlos e a mulher Celeste, que vinham sempre na hora do almoço e do jantar – tinha a Tana: Sebastiana. Cozinheira da vida toda com mão para doces e salgados que ninguém como ela e, ainda por cima, senhora de uma receita imbatível para fazer pipoca. Nunca houve pipoca como a da Tana servida todos os dias, no quartinho dos fundos, entre quatro e cinco da tarde, junto com o chá.

Fora os primos, o piano e a pipoca a outra atração da casa era a topografia e a dimensão alentada dos espaços. Além de tudo o que ficava no andar de baixo, tinha aquele mundo do andar de cima com os seis quartos, banheiro e outro espaço de distribuição, enorme, também. Ambos os andares eram mobiliados com objetos de toda sorte que casavam certo convencionalismo com um arrojado conjunto de telas, desenhos, aquarela, guaches e esculturas da melhor qualidade, espalhados por todos os cômodos já que, alguns, escapavam da clausura do escritório de Mário para semear, no andar de baixo, um pouco da irreverência modernista. Graças a esse sincretismo, conviviam bem bibelôs de porcelana – um casal de velhinhos chineses, sorridentes, sentados sobre as próprias pernas que, tocados, balançavam as mãos, as cabeças e punham as línguas para fora num realismo de gosto duvidoso –; o Cristo “de trancinha”, esculpido por Brecheret em torno de 1920, representação ousada para o tempo, da cabeça de Nosso Senhor; o conjunto de móveis pesados da sala de jantar – mesa, doze cadeiras, aparador e cristaleira escuros iguais a tantos outros – e o Futebol de Andre Lhote, tela cubista monumental, pendurada no trecho de parede entre os dois lances de escada que serviam para ligar os andares.
Depois da morte de Mário o que sobrou dele, na casa, foi o rastro. Em baixo, os dois pianos, quadros, objetos. No andar de cima, no grande escritório, o harmônio, as estantes cheias de livros, as pastas com papéis, mais um tanto de quadros, obras de grande valor artístico, todas concentradas nos dois cômodos em que trabalhava e dormia. Pouco, segundo contavam: nunca mais de quatro horas por noite. E ali, anos a fio, a parede permaneceu coberta pelo que ora comprava, ora ganhava dos amigos: A colona, de Portinari; A família do fuzileiro naval, de Guignard; seus dois retratos a óleo – ambos estupendos – feitos, um, por Lasar Segall, outro por Candido Portinari; uma paisagem com mamoeiro, de Tarsila do Amaral, entre muitas outras coisas.

A presença de Mário de Andrade transbordava do plano concreto dos objetos em sua disposição no espaço da casa tomando as conversas e as lembranças de todos. Na verdade era quase como se não tivesse ido. De tal forma que talvez ninguém ali achasse esquisito se, de repente, anos depois de morto, ele entrasse de novo pela porta da rua no terno de linho branco, fizesse meia dúzia de brincadeiras com quem estivesse no andar de baixo e subisse para, do escritório, escrever, distribuindo-se entre os trabalhos e as cartas aos inumeráveis amigos, alheio ao resto, completamente absorto, mergulhado na solidão misteriosa de seu universo particular.

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