Matinê dançante

Para conhecer uma cidade, nada como andar por ela. E se na ausência de feitos como as praças de Roma ou a harmonia em concreto, vidro e aço de Chicago ela tiver apenas ruas indecisas, largos mal traçados e as multidões de caixotinhos em tijolo aparente que povoam países injustos como o Brasil, o olhar acabará escapando para a natureza e para o vai e vem das pessoas, na movimentação de todos os dias. Como aconteceu na tarde quente da primavera tropical em uma cidade nordestina que vem trocando o encanto tosco de suas construções mais antigas por edifícios altíssimos, pretensiosos, cadeias artificiais que aprisionam a brisa marítima e comprome­tem a graça do espaço urbano.

Então, quem preferir se ver livre desse progresso sem planejamento poderá andar em direção ao centro antigo passando por fileiras de casas quase sempre modestas – umas bonitas, outras menos –, por pracinhas com pouca vegetação, bancos ardendo ao sol, ruas estreitas, desertas, contrapostas a um comércio movimentadíssimo: produtos de baixa complexidade industrial, muitos francamente artesanais, ordenados com senso plástico nas fachadas ao rés do chão. Rendas, redes, colchas, toalhas de muitos tamanhos e feitios; objetos utilitários escavados na madeira; sandálias, botas e bolsas de couro; ervas, temperos, pós e unguentos de variada serventia; arreios, cabrestos, bridões; vestidos bordados para meninas de um mês a dez anos, verdadeiras joias de invenção e habilidade manual.

Se continuar, pouco adiante verá que esse comércio miúdo se desdobra num mercado de quatro andares que resume tudo, facilitando a vida, muito embora à custa do sabor da venda na rua. Quase em frente estará uma igreja feia, escura, coberta de alto a baixo por traços da pior inspiração gótica, iniciativa sem propósito se pensarmos que, perto, ergue-se o lindo Seminário da Prainha, fundado pelos padres lazaristas, onde Cícero Romão estudou de 1864 a 1870, antes de se enraizar em Juazeiro. Nesse trecho, talvez cruze com o formato contemporâneo do Centro Cultural Dragão do Mar ligando a antiga zona portuária às imediações da cidade velha.

No ritmo da caminhada o olho cruzará de um lado para outro colhendo o que se ofere­cer na passagem e, conforme o dia, o ouvido poderá ser atiçado por certa melodia – fraquinha –, crescendo­ à medida que os passos forem apertando ao encontro dela, até dar num ajuntamento anunciando­ coisa digna de nota no Círculo Operário Católico, construção térrea, simpática, erguida em meados do século XX.

Então, próximo ao núcleo do som, desembocará num evento inesperado: casais de velhos dançam com desenvoltura sem se importar em servir de espetáculo a quem passa pela calçada, completamente expostos graças à estrutura vazada do cobogó separando a rua de um pátio, transformado em pista de dança.

Duas da tarde, de sete em sete dias, todas as quintas-feiras, mesmo horário, por cerca de cento e oitenta longos minutos os pares rodopiarão em coreografias ajustadas às possibilidades de cada um. Serão inú­meros os tipos, e as duplas, absolutamente tocantes: casais de extração modesta e graus de habilidade variável parti­lhando a alegria da convivência. Bem-vestidos, banho tomado, as mulheres de batom, com brincos, colares e pulseiras, muitas usando salto alto. Os homens sempre na estica, ciosos da função de cavalheiros.

Quem observar por algum tempo identificará facilmente a dinâmica do grupo definindo os papéis. Então, dará com um gentleman sertanejo, impecável. Alto, magro, pele acobreada, cabelos lisos muito escuros, calça cinza e camisa cor-de-rosa, um verdadeiro príncipe que se movimenta movendo apenas os pés, perfeitamente ereto, olhar fixo num ponto impreciso acima de todas as cabeças, levando a dama com delicadeza sem falar com ela, jamais.

Noutro canto estará o palhaço – um homem mais para moço, rosto colado na senhora­ já entrada em anos – projetando o quadril para trás, tronco rente à dama num cambré excessivo enquanto serpenteia pelo salão ora calcan­do um pé, ora outro, na intenção evidente de valorizar o remelexo.
Dois velhinhos, quase anões, completamente encarquilhados – ele sem tirar o chapéu para nada; ela, cabeleira crespa pelos ombros, rosto fantasmagórico por causa do excesso de pó de arroz, enormes pingentes balançando nas orelhas de abano – se movi­mentam de forma brusca e, desconhecendo ritmo e melodia, tombam mecanicamente ora para um lado, ora para outro. São os mascotes do grupo.

Mais adiante um senhor negro, baixinho também e também de chapéu, bem-posto no terno cinza claro, camisa branca, gola aberta sobre o casaco, ritmo nenhum assim como a parceira, negra e retraída do mesmo jeito. Na boca, um sorriso fixo, doce; nos olhos pisados, toda a tristeza do mundo puxa a lembrança de um crime sem remissão. Vindos dos nossos escravos, os dois, trazem na expressão o rastro da sordidez de que homens e mulheres são capazes e, junto com os outros pares – os tímidos e os salientes; os musicais e os sem ouvido; os elegantes e os desajeitados – ocuparão, com direito igual, seu espaço no baile vespertino. Porque, ali, não se trata de buscar nenhum privilégio ou modelo estético mas da tentativa, renovada, semana a semana, de manter íntegra a identidade.

– Se não fosse por essa dança, eu já teria morrido. De tristeza.

A frase, soprada através dos orifícios pela mulher bonita, contente de poder se exibir na sintonia com o par, revela bem o espírito das matinês dançantes. Graciosíssima, obedece aos comandos do cavalheiro – marido, talvez – vestida com uma saia propositadamente rodada que deixa à mostra, até o alto, nos giros constantes, pernas inacreditáveis para alguém que anunciará, feliz da vida, já ter passado dos 60. Juntos repetem, num ajuste perfeito, séries e mais séries de movimentos previamente ensaiados e dominam cada palmo do pátio como bailarinos profissionais. Aproximando-se e afastando-se sempre com meneios iguais, elaboradíssimos, de pés, braços, tronco e cabeça seja em ritmo de bolero, rumba, samba ou xaxado, porque o gênero musical não estará em questão. Como todos os outros, esses dois, certamente as estrelas das matinês, dançam para si mesmos e para os curiosos, amontoados na calçada.

Os minutos irão voar no compasso de músicas conhecidas tocadas, anos a fio, das grandes cidades aos rincões mais perdidos, cada uma largando atrás o rastro nostálgico de seu poder de evocação. E no peito de quem estiver assistindo começará a surgir um apego insistente por esse ou aquele casal, ficando cada vez mais difícil sair dali para retomar a cami­nhada, na tarde morna de uma certa primave­ra, em Fortaleza.

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