Na água limpa

No comecinho do século passado os fazendeiros de Santa Rita de Cássia iam comprar boi no sertão: Triângulo Mineiro, regiões fronteiriças de Goiás e, por vezes, enveredavam Mato Grosso adentro. 

A viagem de ida podia ser longa mas não trazia grandes sobressaltos: os tocadores atravessavam os caminhos em cima das bestas, dos cavalos, parando para comer, dormir ao relento e avivar o fogo que iria livrá-los de bicho bravo, todas as noites, durante o sono. Já a volta era bem mais difícil por conta da trabalheira com a boiada: carecia vigilância constante e olho vivo para que nenhuma cabeça extraviasse ou se exaurisse na canseira da caminhada. Acontece que nem sempre os cuidados surtiam efeito. Muito boi tombava no percurso – estendido –, a carcaça servindo como pasto para os urubus sobrevoando o tempo todo, confiantes de que, a qualquer momento, um bitelo daqueles desabaria sobre as quatro patas. Aí, antes mesmo que a morte trouxesse sossego ao infeliz, as aves começavam a carnificina fisgando, bicos afiados, pedaço por pedaço do que ainda restava de vida na montanha exausta de couro, osso e músculo.

Para aumentar o rendimento do negócio, contornando o desfalque costumeiro na boiada, um coronel teve a iniciativa de adquirir terras entre o sertão e Santa Rita. Que era para o gado dar uma parada, interromper a marcha e só então seguir adiante, desobrigado, por uns tempos, da troca penitente dos cascos, sol a sol, por caminhos de pouco repouso e nenhum sossego. E quando a comitiva chegava a Santa Rita de Cássia, o gado era posto no largo da igreja, em mais um intervalo antes de continuar até a última etapa. Esse rito se repetia sempre, fosse quem fosse o comprador do rebanho. Então, vacas, bois, touros, novilhos e novilhas rolavam de um lado para o outro no chão sem calçamento da praça, levantando um despotismo de poeira vermelha, na tentativa de reproduzir, em espaço acanhado, os movimentos aprendidos na largueza sem fim do sertão. No dia seguinte, já no rumo do destino final, deixavam uma imundice de estrume e terra revolvida pelo atrito dos cascos duros, dando uma trabalheira danada para pôr tudo em ordem de novo, alisar o chão, igualar o solo e recolher a porcaria esquecida para trás.

Quando foi no ano de 1912, o prefeito novo, homem de certo verniz, resolveu acabar com aquele costume. Mandou construir “o corredor” entre os pastos onde estavam fincados os limites urbanos e o bairro da Água Limpa, conjunto de pequenas propriedades pertencentes a sitiantes. Na verdade, o “corredor” não passava de uma estradinha de terra batida limitada por cercas de arame farpado mas, mesmo despretensioso, livrou para sempre Santa Rita do convívio desajeitado com a boiada, trazida incessantemente do sertão. 

Na Água Limpa, justamente, viviam os Pires, conhecidos, ali, como os Pires da Água Limpa. Todos muito claros, aloirados, olhos azuis: era ver os portugueses do Minho de quem na certa descendiam, sem nenhuma outra raça interferindo no trajeto até eles. Hábitos simples, sempre descalços, laboriosos, tinham a infinita ignorância dos caipiras da região, naquele tempo. 

Pois um dia, cerca de onze anos depois da construção do “corredor”, um Pires desses bate na porta do jovem médico da cidade, no que é atendido pela mulher dele:

– Bom dia, moça… 

– Bom dia…

– Seu marido está?…

– Está… – e foi chamar. – Tem um velhinho descalço, aí fora, querendo falar com você…

O marido sai e fica algum tempo conversando no portão. Quando entra, depois de se despedir, vem radiante e estica com as duas mãos uma nota de cinquenta mil-réis na altura dos olhos da mulher: era muito dinheiro e de grande valia para o aperto financeiro deles, casados havia pouco e já com três filhos pequenos.

– Olhe só isso!

– De onde surgiu?! 

– Daquele senhor…

– Do velhinho descalço?!!!

– Aquele velhinho descalço é gente da minha família, veio acertar umas consultas e ainda trouxe dois frangos de presente para você! E estendeu os frangos cobertos de penas para a mulher, que todos os dias se deparava com uma história diferente, na cidade pequena onde nenhuma linha de trem jamais chegou e o destino decidiu encravá-la, por bom tempo, moça civilizada que era, nascida e crescida no Rio de Janeiro, sem sombra de costume com o universo rústico daquela beira de sertão.

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