Nas malhas do preconceito

– Dizem que o Brizola tem um rebanho de bois no Uruguai; um rebanho de ovelhas no Rio Grande do Sul e um rebanho de burros no Rio de Janeiro: como é que os cariocas puderam eleger um homem desses duas vezes?!

A troça mais o comentário, lançados em alto e bom som, vararam o ensolarado início da tarde nordestina, num restaurante próximo à praia nos idos de 2001 ecoando, nítidos, pelo ambiente. Na mesa, além do arguto filósofo – natural de Pindamonhangaba, residente em Caçapava como soltara, orgulhoso, num dado momento –, almoçava um casal maduro, bem-posto como o nosso personagem, ambos – marido e mulher – provavelmente membros da mesma família e naturais da mesma região. Os homens, muito loquazes, alheios à presença da mulher a quem não dirigiam, jamais, nem a palavra nem o olhar, empenhavam-se em extrair do maître, pacientemente postado ali perto, informações acerca de um dos candidatos à Presidência da República, na eleição que se daria no ano seguinte: ex-prefeito da cidade que visitavam e um bem-sucedido governador do Estado.

– Me arrependi muito votando no Collor. Não queria repetir o erro – justificava nosso homem ao maître – e, agora, não sei em quem votar na próxima eleição…

Conversa vai, conversa vem, na altura do cafezinho a prosa enveredou para problemas de campanha enfrentados pelo candidato em questão, dadas restrições éticas recém-reveladas pela imprensa local, atingindo, em cheio, o vice da chapa. Incauto e apoiado na familiaridade que vinha desfrutando, o maître ousou:

– Ele bem podia chamar o Brizola para vice… É um nome de alcance nacional…

– Ah! não! – protestou incontinenti o fino piadista –, aí eu não voto nele de jeito nenhum! – reagiu, esquecido, aparentemente, de que o ex-governador do Rio integrava a coalizão de forças do dito candidato à Presidência da República, na eleição que se faria em 2002, fato que, aliás, não parecia perturbar-lhe as intenções de voto. Esquecido também, pelo jeito, de que em São Paulo, seu estado de origem, a maior expressão política naquele momento e desde vários anos era Paulo Maluf, político de horizontes limitados, para dizer o mínimo, mero tocador de obras e mais vulnerável a críticas graves de toda sorte do que o outro ex-governador, usado, no entanto, como pretexto para o paulista ofender, de um só lance, o Rio de Janeiro e os cariocas.

Infelizmente é assim que tudo se move e a ordem das coisas tem sido apenas uma, desde a alvorada dos tempos: o que eu não sou é sempre pior do que eu.

Essa convicção, arraigada em cada um de nós, tem como base a lógica terrível do preconceito. Alimentado por um feixe de traços – prepotência, narcisismo, insegurança –, que deveriam se organizar, pelo menos um pouco, passada a fase infantil, o preconceito revela o tanto de obstáculos que homens e mulheres parecem ter que enfrentar para poder construir a personalidade de forma minimamente coesa, harmoniosa, se descolando, assim, do próprio eixo em direção ao outro. Desta forma, o atrito a que estão fadadas a tentativa de afirmação constante do eu e a necessidade de aceitar o outro em sua diferença desaguam, inexoravelmente, na intolerância. E o andamento da história, ano após ano, tem confirmado tanto essa fatalidade quanto a constatação de que não há meio de conseguirmos absorver a diferença como dos mais ricos desafios à inteligência já que, para a maioria, acatá-la implica, necessariamente, insuportável derrota narcísica.

Vai daí que, envoltos na bruma espessa em que boia sua pequena fração de consciência, homens e mulheres continuam se movendo aos tropeços, pobres criaturas mal-acabadas, sujeitas aos acidentes de um absoluto despreparo emocional. De tal forma que, inexoravel­mente preso nas malhas do preconceito, eu sempre serei melhor que meu irmão, minha família melhor que a do meu primo e ambas melhores que a do vizinho; minha raça melhor que outra qualquer, minha religião e minhas escolhas políticas também, assim como os imperativos da minha sexua­lidade – é claro – e os destinos que resolvi dar a ela. Sem deixar de lado meus hábitos e maneira de vestir, a forma como tenho o hábito de me portar em público, o sotaque com que falo a língua de meu país e a região em que nasci ou na qual me criei.

Seja ela, São Paulo, Rio de Janeiro, Caçapava ou Pindamonhangaba.

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