O primeiro sofrimento

A menina vivia para cima e para baixo, brincando livre na rua estreita – curta – em que morava com os pais e a avó. Os vizinhos todos sabiam dela, o tempo todo por ali, às vezes sozinha, às vezes com o amigo fiel de quem, podendo, não desgrudava: um garoto da mesma idade que servia para imprimir encanto às horas, emendar um dia bom no outro. 

Se não estivesse pela rua estaria na casa do amigo ou agarrada à saia da avó – sempre na cadeira de balanço do quarto dela – desenhando, aprendendo a pregar botão e, melhor do que tudo, ouvindo, uma atrás da outra, as histórias que a avó contava como ninguém mais.

Na casa da menina ia muita visita e ela gostava de ficar escutando as conversas, quieta em algum canto da sala. E sendo na hora do lanche, sempre às quatro da tarde, além do café com leite, pão, manteiga, queijo e geleia habituais, haveria bolo e pãozinho de minuto feito na hora. Nesse ritmo a existência seguia tranquila e a menina gostava bem da existência dela.

Um dia colocou-se a questão de que já estaria muito grande – quatro anos – para ficar solta, zanzando o dia inteiro entre a casa e a rua sem fazer nada. O pai foi meio reticente. A avó, não deu palpite – discreta –, mas a mãe afirmou estar mais do que na hora da menina ir para a escola.

Então decidiram o colégio, aprontou-se o uniforme – um avental de quadradinho azul escuro e branco –, a lancheira e lá se foram as duas, a mãe e a menina, para o primeiro dia de aula.

O pátio do recreio era enorme. Frio, escuro como breu, um telhado que não deixava passar réstia de sol, bancos de cimento ao longo das paredes, umas crianças esquisitas parecendo bicho amestrado e a menina rente à mãe não querendo de jeito nenhum largar dela. Aí tocou o sino fazendo um barulho ensurdecedor porque era hora de ir para a classe. Como não tivesse outro jeito, a menina foi se arrastando, coraçãozinho apertado e nó na garganta, até dar numa sala sem graça com a professora dentro, o tempo todo corrigindo o jeito dela desenhar. 

Detestou tudo.

No dia seguinte entraram de novo por aquele pátio soturno adentro e quando tocou o sino, ela não foi de jeito nenhum para a fila, junto com as outras crianças. Ficou perto da mãe, chorando e pedindo para ir embora. A mãe devia ter algum compromisso ou então era o jeito dela mesmo, querendo que a menina acostumasse. Mostrou ligeira impaciência dizendo que não podia ficar ali a tarde toda, que a menina precisava ir com as outras crianças porque na escola não tinha lugar para mãe, nem para pai e muito menos para avó. Então a menina foi, a mãe sendo obrigada a levar até a classe. E de novo a mesma coisa: a expressão fechada e o tom duro da professora, resolvendo o que era para fazer ou deixar de fazer, sem deixar as crianças decidirem nada sozinhas. E a menina detestou tudo outra vez, sofrendo muito.

No terceiro dia, na hora de se aprontar para a escola, disse que não queria ir porque lá era triste e ela não podia fazer as coisas do jeito dela, como estava acostumada. Chorou muito não querendo pôr o aventalzinho nem a lancheira nova, a tiracolo.

Então o pai intercedeu definitivo:

– Deixa ela. Está se vendo que ainda é cedo!

A avó quase morreu de satisfação mas a mãe pareceu meio contrariada, aceitando quieta, mesmo assim, de acordo com o feitio dela. 

Então a menina tirou o avental, vestiu o macacão largando a lancheira num canto e, logo depois do almoço, correu atrás do amigo para brincar na rua ou na casa de um deles, como faziam sempre.

Com isso, as primeiras letras só vieram três anos depois numa outra escola, com pátios enormes, ensolarados e professores que não ficavam se metendo nos desenhos dela. E a partir daí a menina foi indo, sempre um pouco atrasada em relação aos da idade, como atrasada ficou por todo o período escolar, pelo menos um ano mais velha que os colegas e, apesar disso – ou por isso mesmo –, talvez mais feliz e senhora de si do que eles todos. Que provavelmente não haviam transitado desimpedidos até tarde, como ela, pela rua cheia de acontecimentos, encontros improváveis e terrenos baldios povoados por insetos, larvas e plantinhas miúdas, o amigo junto, os dois inventando, sem parar, um faz de conta atrás do outro.

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