O público e o privado

Dois anos a fio os vizinhos de certa casa, erguida por volta de 1950, foram invadidos por uma obra que a demoliu, aterrou a parte dos fundos dando utilização social – puseram lá uma piscina! – ao que antes servia como área para lavar e quarar roupa, para circulação interna, que era o espaço onde ficavam o tanque, as lixeiras, o cachorro, objetos fora de uso e cumpria, enfim, o destino próprio de qualquer quintal, desses que sempre atenderam aos bem aquinhoados estratos da alta classe média brasileira. No lugar construíram outra casa muito maior que avançou impiedosamente sobre as laterais, provocando uma triste promiscuidade espacial onde, antes, ar e luz circulavam livremente. Para concluir, tentando proteger-se do imponderável, ergueram muros altíssimos de todos os lados, afetando, e muito, os pobres vizinhos, alvos indiretos dessa mania persecutória e da volúpia arrivista pelos valorizados metros quadrados da zona sul carioca.

Numa rua que mistura de maneira simpática pequenos edifícios antigos e meia dúzia de casas confortáveis, os contatos entre os moradores sempre fluíram bem sem grandes confraternizações nem conflitos. Muros baixos separando as casas dos prédios e muito pouco arsenal dessa segurança obsessiva que passou a se impor, de uns tempos para cá, a uma categoria social espremida entre os de baixo e os de cima, sempre temerosa de perder espaço.

Pois foi como cunha de lançamento remoto – os novos moradores vinham de bairro afastado da orla marítima – que se abriu uma cratera nas imediações, alterando o dia a dia de quem já estava por ali havia bom tempo. E, muito antes que se pudesse perceber como a obra, simulando não ir além de uma reforma, na verdade passava ao largo de restrições impostas àquela área, pela Prefeitura, a barulheira dos trabalhadores levava os vizinhos ao desespero das oito da manhã às quatro da tarde, principalmente aos que, por força do ofício, trabalhavam em casa. Servindo bem, por outro lado, para trazer à tona a diferença que, em países desiguais, como o nosso, define a enorme distância entre as camadas populares e as camadas médias da população. Porque os operários – tantos! – não falavam: berravam entre si. Com isso, a redondeza passou longo tempo submetida aos embates pessoais deles com eles mesmos, com as namoradas, mulheres, filhos, genros, noras e com o mestre de obras, impotente na administração das ondas incessantes de uma alegria ruidosa – inade­quada para o lugar e a circunstância – e do praguejar lançado ao deus-dará, palavrões soltos numa dicção embaçada e dos quais demonstravam tal dependência que não havia frase, por curta que fosse, em que não metessem, pelo menos, dois. À maneira, diga-se de passagem, das novas gerações de brasileiros, em qualquer categoria social e da maioria de nossos políticos, seja qual for o ideário que os agregue.

Tirante os homens, havia o barulho dos martelos com suas cabeças rijas – enormes –, pondo abaixo telhado e paredes; o despejo contínuo do entulho; o frenesi das estacas, da serra elétrica; a sacaria, subindo e descendo, tudo isso pontuando cada etapa da obra em seu andamento vagaroso, definido pela estrita conveniência dos proprietários. De maneira que, passado certo tempo e apenas pelo ruído, podia-se identificar perfeitamente cada etapa de um processo aparentemente sem fim.

Um dia a casa ficou pronta e o dono entrou em contato com certo vizinho que havia se manifestado contra aquela doideira, numa determinada altura dela. Conversa vai, conversa vem e o vizinho pede, como compensação pelos incontáveis transtornos, que o novo proprietário faça uma calçada igual à do prédio pegado, onde esse vizinho morava havia mais de quarenta anos. Antes modesto – sem elevador, com apenas três andares, nove apartamentos ao todo –, o prediozinho estava muito bem tratado, exibindo, garboso, seus domínios, entre os quais, a calçada de granito cinza cortado em grandes peças quadradas que, unida às pedras iguais de uma casa pegada a ele e oposta à obra, conferia graça e unidade a todo aquele trecho da rua. Sem esquecer o jardim com dois pés de azaleias, quatro flamboyants, orquídeas, bambus, trepadeiras e sebes floridas forrando os vários canteiros que, ao longo de anos, têm feito a alegria de seus moradores e de quem passa e vive nas imediações e parece reconhecer, neste empenho, respeito pelo espaço público nas benfeitorias mantidas com recursos vindos única e exclusivamente do prediozinho. Principalmente o jardim, onde abelhas, beija-flores e borboletas de muitas espécies transitam diariamente, para alegria de todos.

– É claro – concordou o vizinho novo – vamos fazer a calçada, com certeza.

E é claro que não fizeram.

Em frente à casa refeita – recheada de suítes; com um deque de madeiras nobres onde plantaram a tal piscina; pátio interno enfeitado com vegetação sofisticada; sistemas moderníssimos de alarme, segurança e refrigeração – antes de se irem de vez, os operários lambrecaram com cimento, de qualquer jeito e às pressas, as rachaduras e as imperfeições mais visíveis, aproveitando os restos da calçada já existente. E a deixaram lá prestando péssimo serviço com seus inúmeros calombos, mais os indefectíveis estalos pipocando ao longo da superfície, próprios de massa malfeita, areia e cimento de má qualidade misturados com displicência.

Ou seja, tudo normal, correndo estritamente dentro de um quadro previsível. Reação própria da consciência civil indigente dos brasileiros herdada, para ficarmos nos limites da cidade do Rio de Janeiro, de tempos em que particulares despejavam sobre a rua as águas sujas das tinas de banho e o conteúdo malcheiroso dos urinóis.

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