O turrão

Certa vez, no interior de São Paulo, perto do fim do século XIX, um fazendeiro foi visitar o irmão – fazendeiro também –, que não via tinha tempo.

Ficou uns dias na fazenda, matou a saudade e, na véspera de partir – os dois sentados à beira da mesa, a chama indecisa do lampião iluminando mal e mal um começo frio de noite –, prosa vai, prosa vem, chegaram na figura do pai: 

– Mano..

– Hum…

– Você lembra daquele jeito do pai apanhar água?

– Lembro…

– Pegava o copo que ele tinha, pendurado numa corrente, baixava no sentido contrário do rio, enchia até a borda e puxava de volta…

– Era… Lá na fazenda e em qualquer viagem…

– Copo de pau…

– Pau?! Não!!! Era de vidro!

– Não!!! Pau! Lembro bem!

– Nada, mano, era vidro!

– Pau!

– Vidro!

– Era pau!

– Era vidro!

E assim ficaram sem conseguir chegar num entendimento até ir para a cama, cada qual com a sua verdade.

No dia seguinte, quando o dono da fazenda acordou, o irmão já tinha pegado a estrada, deixando em cima da mesa, bem à vista, uns versinhos feitos por ele:

Nas teimas ninguém me iguala,

Com qualquer teimoso eu topo,

Não será de vidro o copo,

Enquanto Deus me der fala.

É de pau, e me regala,

Ser nas teimas infinito,

É de pau de que foi feito,

É de pau e sem defeito,

É de pau, inda repito,

É de pau e tenho dito.

E os versinhos passaram de parente em parente, geração em geração, atravessaram o século XX e, graças ao apego a certa cultura que algumas famílias conseguem criar e manter, ainda estão por aqui dando o ar da graça em pleno século XXI. Sempre que alguém insistir demais na teimosia, haverá quem se lembre dos versinhos, ano atrás ano divertindo e confrontando o turrão com os próprios limites, na métrica fácil que serve de base a tanto recitativo, popular ou erudito, de nossa bela língua portuguesa.

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