Outros carnavais

Domingo de carnaval no Rio, nove horas da noite. Para chegar às arquibancadas – camarotes ou cadeiras de pista – a travessia obrigatória de pobres, ricos e remediados por um mafuá malcheiroso, feio, espremido entre a Marquês de Sapucaí e o viaduto São Sebastião. Fora, o congestionamento de ônibus e vans carregando e descarregando gente o tempo todo num moto próprio que torna perfeitamente dispensável o esforço frenético das dezenas de homens, destacados para organizar a confusão de pessoas e veículos na entrada da passarela. Dentro, a publicidade agressiva das empresas e o correr de carrocinhas – cachorro-quente, refrigerante, pizza, sorvete, pipoca, batata frita – oferecendo, pegado aos sanitários, um sincretismo típico de quinto mundo. O ar escaldante, parado, rescendendo a fritura, abraça tudo no repique de um começo de março.

Anda-se, ainda. Setores 9, 7, 5, 3. Depois da escada mais uma fiscalização e, finalmente, o camarote confortável aberto para os jatos de luz que cruzam o céu da avenida. Outra galáxia e, nela, por dois dias seguidos de cerca de 12 horas cada um, a fantasia vai passar serpenteando feérica na cena móvel, renovada segundo a segundo como o fluxo do tempo.

Nove e meia. A primeira escola começa a desfilar obedecendo à ordem que irá se repetir 14 vezes: apresentação e recuo da bateria, ensaio do carro de som, fala do presidente, início do samba-enredo, entrada da comissão de frente seguida do carro abre-alas e está começando o espetáculo. Por precisos 120 minutos os componentes de cada agremiação devem maravilhar a Marquês de Sapucaí tentando extrair dela a conivência para a vitória. Homens e mulheres belíssimos enfeitando carros alegóricos onde dragões cospem fogo e balançam a língua; teatros com múltiplas cenas apresentam, simultaneamente, a mímica da Commedia dell’Arte, da dramaturgia shakespeariana e do vaudeville em pantomimas encenadas com vivacidade; um barco e uma locomotiva em escala natural se alternam deslizando, suaves, trazendo representações de heróis nacionais vivos e mortos – Lula, Ronaldo, Procópio Ferreira, Zumbi dos Palmares – figuras históricas e personagens bíblicos: Ramsés II, Moisés… Passistas de todas as cores e idades marcam o ritmo com os pés multiplicando o corpo para todos os lados, ao sabor dos limites da própria destreza. Alguns são estupendos e escorregam pelo asfalto como se tivessem rodinhas nos pés, outros são só animados. Mas todos brilham em suas fantasias buscando com empenho manter a energia nas alturas.

Passa a primeira escola, comovente no conjunto. A verba apertada pode ser medida pela modéstia com que estão vestidos os empurradores dos carros alegóricos: cada um com sua roupa mesmo, sambando numa alegria de dar gosto. Entra a segunda, mais rica, efeitos visuais sob estrito controle. Nela, os empurradores vêm uniformizados, iguais e elegantíssimos. Calças e sapatos brancos, camisa estampada de vermelho. Nada foge à mão de ferro do carnavalesco e a noite segue na sequência de deslumbramentos.

Chega a vez da terceira escola e a ordem se repete. Bela comissão de frente com melhores e novas surpresas. Alegorias formidáveis, samba-enredo competente, ritmo alucinante. Então, quando menos se espera, o mistério do samba. Arquibancadas, cadeiras e camarotes ondulam num movimento só. Fotógrafos, às dezenas, brotam de todos os cantos à cata do foco único. Linda, embora não seja isso que a destaque, a madrinha inicia um diálogo de graça e elegância com a bateria, seu mestre e a plateia, que irá se estender por todo o percurso. Unidos, moça, músicos e multidão celebram o milagre que, de vez em quando, irrompe no carnaval carioca. Deve ter sido assim com Delegado, o mítico mestre-sala da Mangueira; com Gigi, sua passista; Paula, porta-estandarte do Salgueiro e pouquíssimos outros. A imensa plateia encurta o fôlego e, identificada a vocação para a avenida, dá passagem, respeitosa, a Luma de Oliveira e à nobreza que, a cada ano, renasce nela durante o tempo do desfile. Hierática como os velhos sambistas negros passa, apesar de branca, movimentando o corpo e a alma com a dignidade dos grandes virtuoses. Nada soa falso, nenhum gesto, gratuito. Tudo nela é encanto e disciplina. Cada palmo de passarela se vê ocupado com maestria, cada passo, cada movimento exprime domínio absoluto dessa cena monumental inventada no Rio de Janeiro. Em intervalos regulares, do alto da excepcional beleza, ela se curva reverenciando o mestre da bateria e, nele, a arte da avenida, seus intérpretes e cultores. Nesses hiatos os músicos acompanham o gesto, galvanizados, sob a batuta do condutor, que recebe a homenagem entre despótico e sem jeito. Respeitosa, a seus pés, coroada por extraordinários penachos vermelhos, a sambista lentamente retoma o prumo e, com altivez de rainha, segue flutuando até o fim da pista servindo à percussão da escola, solícita com a arquibancada que não consegue despegar de Luma, no tempo breve de sua passagem, nem os olhos nem o coração.

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