Que remédio?…

Faltando cerca de um mês para os 13 anos, a menina aparou no corpo a notícia, viscosa, rubra, de que os tempos, dali para a frente, seriam outros. 

Inconsolável, no primeiro sinal fechou-se em copas numa tristeza sem tamanho anunciada à mãe, ao pai e à avó, tronco, braços e pernas largados no sofá da sala de visitas – ventre doído, pesado – enquanto os três jantavam na outra em frente, acompanhando, respeitosos, o desespero dela. Não estava com fome e não queria nada. Só olhar para o teto fixamente, desafiadora atrás de um desmentido. E nem fazia questão de esconder o sentimento. Ao contrário, que ficasse claro: estava arrasada.

Bem ou mal, até a eclosão do fato inevitável, havia conseguido driblar o tempo agindo nela. Magrinha, miúda, tirava a alegria das coisas que apenas as crianças alcançam. Mas, dali para a frente: outro mundo: por causa do incômodo daquele ritmo aflorando, silencioso, no compromisso implacável com a metódica sucessão dos minutos, dia após dia, mês após mês. Estava na hora e não havia força humana que pudesse impedir. 

Aconteceu, para mal dos pecados, que o padecimento com a expulsão daquele fluido encontrou companhia. No ritmo da mudança a menina – moça? – arranjou outro sofrimento. Que chegava passado o distúrbio visual anunciando a enxaqueca, logo depois de uma divisão luminosa de todas as imagens à frente dela. Espécie de fragmentação que embaralhava a vista e percorria o globo ocular de um extremo a outro, estancando depois de certo tempo próximo às têmporas. E quando a luminescência ia embora, era vez da cabeça estourar, obrigando a moça a ir para o quarto escuro, isolada de tudo, sofrendo pacientemente até o ciclo de cerca de uma hora se completar. Isso, entrando mês, saindo mês, anos seguidos, até não haver dúvida possível de que menina não havia mais. Então, conformada, foi descobrindo os paliativos e aprendendo a cuidar das próprias dores. 

Para o incômodo no ventre: Rebalsin papaverina, remédio prescrito pelo tio médico. Chegava-se com a queixa, fosse qual fosse e o tio ia direto para o armarinho, embutido num dos banheiros da casa dele e, sem hesitar, vinha de lá com a solução. Com o Rebalsin papaverina tinha sido exatamente assim: embalagem verde e branca, gosto hediondo, gotas de um amargor absoluto no qual água com açúcar nenhuma dava jeito. Tomado quando as dores apenas se anunciavam, fazia bom efeito. Por isso a moça enfrentava o estrago da droga caindo na boca, menos pior do que a dor estraçalhando, lancinante, o centro dela.

Nas enxaquecas, seguia o caminho ensinado pelo pai: uma Cafiaspirina inteira bem mastigada, engolida com um pouco de água para o estômago não ficar queimando no esforço de diluir a pastilha. Um horror. Pior do que o Rebalsin papaverina e quase tão ruim quanto as enxaquecas. 

Por anos a fio esse foi o ritual de todos os meses, enfrentado com certo estoicismo, a moça reconhecendo nele a condição para alcançar novo estágio na progressão inexorável pelo arco do tempo: uma etapa bem mais complicada pela qual jamais tivera interesse ou simpatia.

Então, até conseguir se entender com ela própria, foi indo aos trancos, procurando contornar uma agonia surda, latente, contínua, expressa nos desacertos do corpo, obstinadamente fixada num período luminoso que não voltaria mais. Recuperado apenas depois da vida já adiantada, graças à tendência para a fabulação da menina lá de trás, que a mulher, entrada em anos, conseguira reter e, a partir de certo ponto, descobriu como usar.

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