– O senhor está livre?
– Estou sim senhora.
A pergunta é inevitável. Com vidros escuros – instalados para proteger mais de assalto que do sol – os táxis, no Rio de Janeiro, volta e meia precisam ser abordados. Senão, como saber? Se as luzinhas verdes nem sempre funcionam, quando funcionam, não querem dizer muita coisa, e o ar-condicionado obriga a que andem de janelas fechadas?
– Praia de Botafogo, por favor.
– A senhora não se importa de me indicar o caminho? Conheço mal a zona sul…
– Claro! Tome, por favor, à esquerda para voltar pela praia. Lá o trânsito está fluindo?
– Está sim senhora. Bem melhor do que aqui: emperrado…
– Hoje o trajeto dos blocos não deve ser a praia…
– Acho que não é, não senhora. Vim deixar meu filho num bloco, aqui no Leblon, e estou fazendo hora para poder levar ele de volta pra casa…
– Sei… Que idade ele tem?
– 17…
– Filho único?
– É sim senhora…
– E o senhor, costuma rodar onde?
– No meu bairro. Sou nascido e criado lá e não saio quase nunca. Mas o menino queria brincar e onde a gente vive não tem mais carnaval…
– Não? Engraçado… Mas no subúrbio… Por quê?
– Por causa da milícia…
– Da milícia!?
– Controla tudo…
– Como assim!?
– Ninguém trabalha sem pagar alguma coisa pra ela… E acabou com o nosso carnaval…
– O que é isso!?
– Controle…
– Em troca de proteção?
– Não senhora! Ela não protege nada, mas exige uma cota do que cada um ganha…
– Minha mãe de Deus! Quanto?
– Motorista de táxi que for morador, rodando dentro ou fora do bairro tem que dar R$ 100,00 toda a semana: R$ 400,00 por mês…
– Pra nada?
– Pra nada… Com a bandidagem, ela vive em guerra… Aquilo virou uma confusão… Outro dia fui assaltado, me levaram R$ 900,00…
– E a milícia? Fez o quê?
– Nada… Eu não sei quem foi… Acho que pessoal de fora, quem mora lá não tem coragem porque, se ela pega, acaba com o desgraçado… Já com a gente, os R$ 100,00 não podem falhar: não está nem aí pra assalto, doença, praça fraca ou corrida pouca…
– Por que o senhor não se muda?
– Morei lá a vida inteira, sou apegado ao bairro… E tem mais, quando o profissional compra carro novo, dá pra ela o equivalente à isenção do ICMS e do IPI…
– …
– Por lei, a gente tem direito a um desconto que varia de 20 a 25%. Se o carro custa R$ 40 000,00, vamos supor, a gente compra por R$ 8.000,00, R$ 10.000,00 a menos. Só que, lá, isso vai inteirinho pra milícia, quer dizer, a transação sai como se a gente fosse um particular, a senhora entende?
– Vocês são extorquidos?! É isso?!
– …
– Ou seja, milicianos, todos funcionários públicos – bombeiros, policiais, agentes penitenciários, militares – bloqueando, em benefício próprio, taxas destinadas ao bem comum. Ameaçam a quem deveriam servir e prejudicam o Estado do qual acabam ganhando em dobro…
– É sim senhora… Fazer o quê?
– Assim, de fato, fica difícil… Mas, fazer o quê, como diz o senhor…
Depois de uma pausa, já tendo varado quietos boa parte da enseada de Botafogo, a informação ao motorista:
– Pegue, por favor, o próximo retorno… O trecho em que eu vou é logo depois…
– Sim senhora…
O táxi roda mais um pouco conduzindo um silêncio pesado e estaciona ao sinal da passageira:
– Está bem aqui… Quanto deu?
– R$ 22,00…
– Tire R$ 25,00, por favor…
– Muito obrigado…
– Até logo… Espero que as coisas melhorem onde o senhor mora…
– Com esses políticos, não vão melhorar nunca… Até logo… Foi um prazer conversar com a senhora…
– O prazer foi meu…
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sim denunciar o descalabro é preciso e vamos ter que descobrir uma saída…por ora quero aplaudir o amor desse taxista pelo filho adolescente que quis brincar Carnaval no bloco…quantos pais será que levam e aguardam os filhos para que possam se divertir com segurança?
Triste realidade a qual estamos submetidos, uns mais, uns menos!
É uma tristeza mesmo o ponto a que chegamos. É a sociedade se desfazendo, se descompondo diante de nossos olhos. Uma simples conversa com o motorista já mostra este estado de desagregação. Uma simples crônica já toca o cerne do problema da nossa sociedade.
Mais realista impossível. Situação de descalabro.
O texto nos coloca frente a frente com a nossa realidade nua e crua. Subúrbio ou zona sul vivenciam os mesmos problemas. E a grande tragédia fica mais uma vez latente:fazer o quê?????
É realista e sério o que acontece com esse taxista. O motorista reflete a luta diária, o descalabro desse país em que vivemos
Thereza Miranda
Isa, estou aqui de queixo caído com essa história – crônica de uma cidade sitiada de várias formas. Parabéns pela estreia como blogueira – só posso desejar que vc continue, seus posts estão muito bons!
Bjs da prima
Para isso fomos feitos? Triste situação a nossa. Onde falha o Estado, a milícia comanda.Até quando será assim?
Que tempos esses nossos !! O exemplo vem de cima, desses nossos desonestos governantes.
Continue nos brindando com suas observações tão bem escritas
Crônica pungente. Típica de nossos dias.
Milícias versus carnaval, moradores, pais, filhos …
Somos todos reféns, de uma maneira ou de outra.
Flora
Você tem muita coragem. Parabéns! A questão é uma só: a que esta reduzida nossa cidadania?
Ótima crônica de uma cidade (ou país) ameaçada. Vivo na Bahia e é a mesma coisa. Um dos problemas está no tráfico e na criminalização das drogas, que “justificam” a extorsão de milicianos e a mistura execrável da Polícia e da PM (vereadores, deputados etc) aos profissionais dignos, como o que dublava o Harry Porter e foi assassinado em missão em uma UPP. Pena que a crõnica omitiu o bairro. Denunciar um é melhor do que nada… Ótima crônica.
Gostei. Mostra claramente o tempo que vivemos.. ” Que fazer? “