Um vestido de noiva

O casamento do irmão caçula do pai ficou vivo na lembrança da menina como dos acontecimentos importantes da primeira infância. 

O noivo e a noiva eram lindos, estavam elegantíssimos e a cerimônia religiosa foi memorável em termos de adequação aos padrões de um certo bom gosto burguês.

Tudo muito simples, sem ostentação e sem erro, da escolha da igreja e das flores, passando pelos padrinhos, em pé, como os pais dos noivos, todos impecavelmente postos, formando o bloco das testemunhas: seis de cada lado. Eles, em fraques bem cortadíssimos; elas, todas de chapéu, vestidas com o apuro das grandes ocasiões. Juntos, compunham a melhor moldura para o que se passava no altar.

A noiva tinha duas irmãs mais moças – gêmeas e de rara beleza –, que entraram na frente como damas de honra, ambas também de branco, abrindo caminho no passo da marcha nupcial de Wagner, perfeitamente ajustada ao ritmo solene daquele início de cerimônia. O vestido era de tafetá, alvíssimo, mangas compridas, corpo fechado até o alto sem nenhum decote e, na saia, se abria um triângulo isósceles, vértice pousado na cintura da noiva e aresta menor terminando rente ao chão. No interior do triângulo, carreiras paralelas em sentido horizontal ocupavam o espaço de alto a baixo, fixando, a pouca distância um do outro, apliques de rendas curtas, ou tiras frisadas, talvez do mesmo tafetá. O coque baixo não brigava com o véu, ajustado mais para trás da cabeça, deixando livres a beleza e a expressão feliz da moça. 

De fraque, colete cinza, plastrom e calça riscada, o tio estava na maior estica, formando com a noiva um casal de cair o queixo.

Completavam a cena, os figurantes: amigos e parentes de grande distinção, em geral também muito bem-vestidos, principalmente os do lado da noiva, gente escovadíssima, de muita desenvoltura social.

A menina nunca tinha visto nada nem de longe parecido. Jamais havia estado em outro casamento e, no dos pais não podia, é claro, ter estado mesmo. Mas, para decepção sua, ficara sabendo que havia sido bem diferente: nada de música; nada de igreja enfeitada com copos de leite; nada de cortejo nem para entrar nem para sair; nada de fraque e nem de buquê e muito menos vestido de noiva. A mãe tinha casado com um tailleur azul-claro, de linho, e o pai com um terno novo, mas desses para usar todos os dias. E não fosse o respeito pelas tias-avós da mãe, velhinhas e muito católicas, não tinha tido nem igreja. Os dois foram direto para o altar, a mãe não entrou de braço dado com o pai dela e nem saiu de braço dado com o pai da menina, tudo meio fora do esquadro para os hábitos das famílias deles, dos amigos e conhecidos.

Então o casamento do tio foi, para a menina, um espetáculo inédito, desses que não se esquece mais, o cortejo saindo atrás dos noivos – a mãe era uma das madrinhas – e a outra marcha, a de Mendelssohn, marcando o grande final com seus sopros, cordas e o som metálico dos pratos traduzindo a euforia daquele momento. 

Depois da igreja, a recepção na casa dos pais da noiva – agradabilíssima, com jeito de cottage inglês e plantada no meio de um gramado – só para os íntimos.

A menina corria excitadíssima, de um lado para outro, sala em sala, passando pelo meio das conversas – ela gostava da prosa dos adultos –, e ficava comparando muitas coisas: as roupas das senhoras; bolsas, chapéus e sapatos; a diferença de timbre das vozes e o teor dos assuntos de cada grupo, formados meio ao acaso, no ritmo do borburinho.

Acabou encontrando um amigo, a única criança ali, tirante ela mesma: primo-irmão da noiva com quem se pôs, imediatamente, a correr de baixo para cima e a examinar todas as possibilidades da casa: o menino tinha a idade dela e também era bem ativo.

Numa dessas idas e vindas pelo meio dos grupos, indo aceleradíssimos e incansáveis de um ambiente a outro, acabaram descobrindo os noivos, no segundo andar, posando para uma sessão de fotografias, apartados do resto da festa, e ficaram um tempão espiando o fotógrafo registrar a alegria deles, pela réstia da porta.

Findas as fotografias e surpreendendo as crianças do lado de fora do quarto, o fotógrafo entendeu o deslumbramento e faz um agrado. Apanhou os buquês das damas de honra, deixados ali porque ambas haviam passado por uma sessão igual, pôs um na mão da menina, outro na mão do menino, postou-se no andar de baixo, em frente à escada e fez com que os dois descessem lentamente, de braços dados, fingindo um casamento. A menina quase estourou de alegria e, na maior seriedade, prestou-se ao papel com incrível compostura, transformando mentalmente as botinhas brancas em sapatos de cetim, o vestido de organdi estampado com florzinhas de todas as cores num longuíssimo traje branco, cauda incomensurável arrastando pelo assoalho.

Batida a fotografia e controlada a emoção, ela voltou para o centro da festa, no andar de baixo e quando ia passando, o pai chamou:

– Menina, venha cá! Cumprimente o doutor Olavo, parente de sua avó…

– Ah!… Sei… Aquele com quem a mamãe não queria sair de braço dado da igreja porque achava ele muito baixinho… – e olhando com atenção, mediu meticulosamente de alto a baixo. – Eu não acho ele tão baixinho assim….

A avó da menina lembrava que, nesse momento e por acaso, o olhar dela passeando pela festa tinha pousado no filho, na neta e no tal senhor que, além de parente da avó materna da menina, vinha a ser um industrial próspero, patrão do noivo e, diante do episódio, armara uma expressão contrafeita, não parecendo sentir necessidade nenhuma de esconder. O pai, por sua vez, teria ficado branco como pó de cal: sacudia com força, sem parar, o braço da menina insistindo como autômato:

– Não menina!!! Não era o doutor Olavo, era o O-la-vi-nho, neto dele!!!

– Não era não! Era esse mesmo… Eu lembro!… A mamãe até disse que de sapato de salto e chapéu ia ficar mais alta ainda e não queria fazer par com o doutor Olavo porque achava esquisito!

De volta da festa, o pai e a mãe começaram a explicar, cheios de palavras, que ela não podia fazer aquelas coisas, que nem tudo o que a gente ouve dentro de casa pode ser dito fora e assim por diante. Ela entendia e ao mesmo tempo não entendia. De qualquer forma, aquilo soava como absolutamente sem importância. Importante tinha sido o casamento – a igreja, a festa, a elegância dos convidados, a fotografia com o amigo, os dois, buquês, os bem-casados – e principalmente a noiva que, a partir dali, e por anos a fio, a menina não parou de desenhar, sem esquecer nunca do triângulo isósceles aberto na saia do vestido, vértice pousado na cintura, lado menor cobrindo os pés e as fileiras de apliques colocados em sentido vertical que, nos desenhos, eram representados por uns frisadinhos, que ela fazia ondulando o traço a lápis sobre a superfície clara do papel.

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