Uma ética selvagem

Numa cidadezinha do interior de Minas, pouco depois dos primeiros 10 anos do século que passou, certa moça – família rica, aprumada na região – se apaixonou pelo parente de um ramo pobre. O rapaz beirava os 19, ela, os 17. Então pediu aos pais licença para casar, no que foi completa e terminantemente proibida: sem eira nem beira, o moço não podia oferecer senão um horizonte acanhado e isso eles não queriam para a filha de jeito nenhum.

Tendo em vista essa atitude, determinada, ela não conversou. Combinando tudo ponto por ponto com o namorado, os dois fugiram para longe dali numa noite gelada e muito escura.

Pai, mãe, irmãos ficaram injuriados e, como era hábito, naquele tempo, naquela zona e na categoria social deles, contrataram uns jagunços para o serviço de trazer a moça e matar o rapaz mostrando as orelhas como prova.

Aí a mãe, mulher piedosa, pediu ao marido uma correção na encomenda:

– Diz para não matar, não. Basta aleijar.

E assim foi.

Os jagunços rastrearam as imediações por três ou quatro dias seguidos dando finalmente com os dois. Separaram a moça do rapaz e bateram tanto nele, mas tanto, que o deixaram hemiplégico para sempre. A partir daí, e tendo sobrevivido à violência, o pobre passou a arrastar a metade do corpo com esforço, puxando uma perna e vendo bastante reduzidos os movimentos do braço desse mesmo lado.

Passaram-se quatro anos e a moça chegou aos 21, saindo – maior de idade – definitivamente da casa dos pais para casar com o primo pobre e aleijado, senhora do próprio trajeto e nenhum dever de obediência a mais ninguém.

Foram felizes, tiveram filhos e ganhavam a vida, ela, fazendo pamonha, pé de moleque, cocada, tablete de doce de leite, de abóbora, de batata-doce, de cidra; ele, se arrastando pela cidade, tabuleiro em punho para vender aquela quitanda variada, até o dia em que resolveram sair dali para se distanciar, quem sabe, das lembranças tristes e tocar em frente com mais alegria.

Foram morar numa cidade beirando a linha do trem que cortava toda aquela zona e onde o rapaz tinha como ponto a estação. Toda vez que um trem parava, silvando no meio da fumaça, lá ia ele, movimentos difíceis, para perto das janelas, tabuleiro, pamonha e doces à mostra, oferecendo numa voz fanha, trincada, atingida pela mesma brutalidade:

– Pamonha! Pé de moleque! Cocada!

Certa ocasião, perto de 30 anos passados, uma senhora – moradora da cidadezinha tendo chegado lá pouco tempo depois do acontecido, ela própria com a vida toda mudada, viúva, filhos já adultos, todos vivendo em São Paulo – ia para aqueles lados quando o trem parou no passo lento dele: estação de Mogi Mirim. Na janela, esperando o embarque e o desembarque de malas, pacotes e passageiros, de repente a senhora ouve uma voz conhecida trazendo, no rastro, o registro intacto de outro tempo:

– Pamonha! Pé de moleque! Cocada!

Dando conta do sobressalto, firmou a vista e reconheceu, gasto pelos anos, o pobre aleijado na plataforma, parente do marido dela, como também a moça com quem tinha casado. Chamou pelo nome e ele veio se arrastando mais o tabuleiro de doces até a janela, sem entender bem o que estava acontecendo e nem quem seria aquela mulher, cabelo todo branco, vestida de preto de alto a baixo de quem, de tão mudada e, assim, de chofre, não poderia lembrar mesmo:

– Sou a viúva do dr. Ascânio – e disse o nome do marido morto. Antes que o homem pudesse unir as ideias e resgatar a senhora de anos longínquos, o trem se pôs de novo em movimento deixando-o para trás, olhar perdido no tempo, tentando extrair aquele rosto da memória, como perdida também ela se foi, alheia ao choque metálico – insistente – das rodas duras contra o trilho, lembrança voltada, em bloco, para a cidadezinha onde tinha sido feliz como, havia muito, já não era mais.

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