Uma farmácia em 3 tempos

O Leblon é um bairro empenhado em oferecer ilhas de sofisticação em meio à feiura crescente do espaço construído do Rio de Janeiro, onde a exploração do solo urbano tem se imposto da pior forma. O efeito disso se vê nas calçadas imundas, cheias de falhas, frestas, lixo, buracos, desníveis; nos muros pichados – do subúrbio à mais cara das vizinhanças; nos prédios de péssima arquitetura excessivamente próximos uns dos outros, paredões de concreto vencendo a altura das montanhas e aviltando a extraordinária topografia do Rio. Nas pistas de velocidade que destroem bairros inteiros; em postes de tudo quanto é jeito e tamanho entrelaçados a cipoais de fios conduzindo serviços de utilidade pública pouco eficientes; nas centenas de coletivos rodando ao mesmo tempo em perfeita sintonia com nuvens de gás carbônico que entopem vias de acesso indispensáveis, com alto risco para a segurança de quem ousa resistir a eles. Sem falar nas aceleradas em coro contínuo, código com que tornam clara a disposição permanentemente agressiva. E tudo isso coroado pelas favelas, encarapitadas em todos os morros disponíveis, solapando encostas e pondo abaixo extensões e mais extensões de florestas.

Nesse quadro, alguns pontos da zona sul do Rio, como o Leblon, justamente, tentam construir um mundo à parte voltado para as classes privilegiadas, com bons restaurantes, ótimas livrarias, ­muitas delas contando com cafés agradabilíssimos e patisserie de primeira; lojas que vendem produtos finos de qualquer natureza – nacionais e importados; bancas de jornais e revistas onde se pode comprar notícias de todos os cantos do mundo.

Pois numa esquina do Leblon ficava a farmácia Piauí, aberta de sol a sol, sempre atenta ao bairro e a todos aqueles que, mesmo vindos de longe, precisassem de socorro em horários improváveis. Durante anos seguidos a Piauí acudiu em seus balcões os achacados por dor física ou moral oferecendo, de quebra, a possibilidade do encontro entre amigos e conhecidos que se esbarravam neles de manhã, de tarde, de noite ou de madrugada.

Um dia a Piauí fechou para tristeza de todos os horários, dando lugar a mais um elo da portentosa cadeia Raia, que há alguns anos vem cravando pelo Brasil afora suas incontáveis franquias: não houve choradeira que segurasse a marcha dos negócios.

Nesse novo cenário, uma paulista perdida no Rio há tempos, na habitual visita de fins de semana ao Leblon, deu com a novidade afixada do lado de fora da Droga Raia – antiga Piauí – na face que dá para a rua lateral, a Rita Ludolf. Ao lançar pela undécima vez o olhar sobre a esquina da velha farmácia, buscando pretexto para alimentar a saudade, deu com motivo mais consistente de nostalgia: a ampliação em preto e branco de uma foto mostrando certo espaço comercial, cortado pela frase “Há mais de cinquenta anos servindo com qualidade”. No registro da fotografia, armários escuros, caixilhos de madeira lavrada, portas de vidro, frascos transparentes misturados a embalagens de papel enfileirados com ordem nas prateleiras, mais um cheiro acre-doce de cânfora varando os limites da memória. O farmacêutico, avental branco muito limpo atrás do balcão, óculos de aros fortes, cabelos rentes, bigodes escuros cuidadosamente aparados acusava, como todo o resto, as maneiras, os arranjos, o espírito, em suma, do atendimento comercial de fins de 1940, meados de 1950.

O coração da moça começou a bater depressa. Não!… Seria possível?…Afinal, a disposição interna das farmácias daquele tempo era muito parecida… Então fincou bem o olho na imagem e, examinando os detalhes, teve a confirmação na figura elegante de um rapaz de olhos gateados, entrevisto na portinhola atrás de um dos balcões, em frente ao quartinho em que se aplicavam as injeções. Era ele! Era ele, sim! O moço da farmácia Internacional! Filho do dono ou do gerente, talvez, com quem, anos a fio, nossa paulista, ainda criança, cruzava pela cidade nas férias passadas em Araraquara! No clube, jogando tênis, impecável, roupa toda branca; nas matinês de carnaval, vendo o baile em pé, muito composto na beira do salão e todos os dias dentro da farmácia, ajudando. Sempre comedido, impressionando a menina com quem jamais trocou palavra e que, mesmo assim, não apagou da lembrança a expresão doce, a figura sempre de claro que, por conta dos olhos azuis, da pele rosada, do cabelo louro, ela associava às representações dos arcanjos renascentistas, folheando os livros de arte da mãe. O que terá sido feito do moço? Terá alguma coisa a ver com o formidável crescimento da rede de drogarias Raia? O negócio ainda estará com a família? Seria ele da família? Estará vivo? Dúvidas sem volta nem resposta.

De qualquer forma, agora, no Leblon, mais precisamente na esquina de Ataulfo de Paiva com Rita Ludolf, a moça passará a ter, a cada fim de semana, um diálogo mudo com a fotografia, deixando a memória levar o coração para um tempo bom, até o dia em que a farmácia mudar outra vez de mãos, ou os donos resolverem tirar a fotografia da parede por achar que já terá cumprido a função.

A partir daí, para a moça, a esquina voltará a ser apenas o entroncamento de ruas barulhentas, sujas e malcuidadas, num bairro comprometido em escamotear as próprias limitações com expedientes frágeis, repetindo, em menor grau, a dinâmica que se amplia dele para toda a cidade e da cidade para o país, levando o Brasil a ser um repositório inexcedível no campo da contrafação, da injustiça social, da violência e da falta de planejamento urbano.

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