Vitória

Aos domingos, 10 da manhã, Vitória aparecia para catar feijão na casa do menino. Corria o ano de 1927 e, quase cega, coitada, já não dava mais conta daquilo. Quer dizer, depois de passar por ela, o feijão era visto por outro par de olhos, menos gastos e menos feridos pelo tempo, que retiravam dele as pedrinhas e as impurezas que ela tinha deixado ficar. E a cada vez, em todas as semanas, o menino sentava para conversar na cozinha: era muito curioso e carente da prosa dos mais velhos.

Vitória era uma negra alta, grande e forte, antiga propriedade de seu Joaquim Jacó, fazendeiro cruel, conhecido na região de Passos, Santa Rita de Cássia e Carmo do Rio Claro por maltratar demais os escravos.

Certo dia anunciou estar indo para a cidade com a família assistir à festa do santo: ia ficar lá por algum tempo deixando as jabuticabeiras todas floridas. Era certo as frutas aparecerem a qualquer momento e, mesmo sabendo que não estaria de volta a tempo de aproveitá-las, proibia quem quer que fosse de relar nelas. Queria vê-las todas na volta, as frutas secas grudadas nos troncos, cada qual em seu lugar. E se desse por falta de alguma ou com jabuticaba comida espalhada no chão, os escravos todos iriam para o tronco, entrando no chicote. E foi-se embora com a família.

Aconteceu que, as frutas nascendo, só de pirraça Vitória e as outras escravas da fazenda, instigadas por ela, subiram nos pés se regalando o quanto puderam e, o que não conseguiram comer, derrubaram juntando as duas mãos e escorrendo os braços de alto a baixo, galho por galho, deixando todos completamente nus.

Quando o patrão voltou e deu com o acontecido foi logo pegando o rebenque, querendo saber quem tinha feito aquilo. Muito abusada Vitória disse, sem pestanejar, ter sido ela. E no que o senhor ia começar a descer o relho deu um trançapé derrubando, montou em cima do peito imobilizando-o no chão do pomar, pendurou-se na barba comprida dele malhando a cabeça no chão, que nem coco maduro, um tanto de vezes.

Por causa disso, o castigo não deve ter sido pouco nem pequeno e a pobre, com toda a certeza, comeu o pão que o diabo amassou. De qualquer forma, tudo leva a crer que seu Joaquim Jacó não quis mais aquela fera por perto, decidindo passá-la adiante. No que Vitória acabou comprada pelo avô do menino do qual foi cozinheira por anos a fio, fazendo um feijão do qual se dizia ser inigualável: verdadeiro manjar dos céus.

– Tive dois filhos com seu Joaquim Jacó.

– Ele era seu marido, tia Vitória?

– Não!

– A senhora era casada com ele?

– Não!

– Mas então, como teve filho dele?

– Eu tive dois filhos com seu Joaquim Jacó!

Continuava enfática repetindo sem responder, fosse a pergunta feita duas, 10 ou 20 vezes. Causando, com isso, uma agonia sem fim no menino e pondo nele o que certamente terá sido a primeira grande perplexidade face a um problema sem solução, considerado o contorno de sua lógica infantil.

E assim, em todos aqueles domingos, depois de catar o feijão, Vitória ia ficando, almoçava e, lá pelo meio da tarde, a mãe do menino enchia uma cesta com provisões para a semana, punha na mão do empregado que ia acompanhando Vitória de volta à casinha onde vivia só, num bairro distante, região mais baixa do que o resto da cidade, tendo por nome Buracão.

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