Vizinha de assento

Sete dias de sol ardente e desligamento da rotina cansativa da cidade violenta, cada vez maior: a mesma sensação que há de experimentar um lençol posto para quarar ao sol de qualquer quintal arejado, depois de anos secando em áreas internas de pequenos apartamentos sombrios.

Na volta, entrando no avião, a descoberta de um vizinho de assento incômodo.

Cadeira 6A – janela–, na 6B – meio –, já sentada, a figura imensa de um ser gordo, malcheiroso, bastão entre as pernas, um barbante encardido pendurado. Homem ou mulher? Traços nitidamente eslavos, óculos escuros e um boné ensebado, sujo, vermelho algum dia, talvez. Cabelos louros, lisos, curtíssimos, ensebados também. Pele amarela, braços e faces cobertos por feridas, camisa e calça masculinas, um murmurar intermitente consigo mesma. Era mulher, podia-se perceber depois de observação mais atenta. Tcheca? Búlgara? Polonesa? Então, o impulso odioso:

– Seria possível outro assento?

– Infelizmente não, o voo está lotado. Até Brasília ainda posso deslocar a senhora, mas no trecho Brasília-Rio terá que voltar.

– Muito obrigada. Então é melhor ficar aqui mesmo.

Alívio. Evitada a crise de consciência que seguramente acompanharia a mudança de lugar, encerrou-se o diálogo em português, inacessível para a vizinha de assento.

Coração à larga e rápida passagem de olhos pela revista da companhia aérea. Reportagens curtas, sob medida para a atenção disponível no tempo de voo. Começa o primeiro serviço de bordo, um café da manhã meio pobre. De uns tempos para cá a qualidade de atendimento decaiu muito nessas viagens. Mas a passageira do assento 6B devia ter outra opinião: comeu tudo apalpando cuidadosamente cada centímetro da bandeja para sentir o caminho pelo tato. Era cega.

– Para beber?

– Nada, muito obrigada.

Orange, soltou decidida a vizinha.

Fim do serviço de bordo e, já próximo a Brasília, o susto:

– Rio? com um R decidido, a pergunta à ocupante da cadeira da janela, pela ocupante da cadeira do meio.

No, Brasília. Rio is the next stop.

– Ah! Brasilia… what time is it?

Third past eight.

Oh! I see. Me, sperantist – comunicou-se num inglês ainda pior do que o da companheira de viagem.

How interesting! Speranto has its rooths in latin and it is quite similar to portuguese.

To Francia too, continuou a vizinha, misturando. I’m going to Moskova – era russa, portanto.– In speranto, unu, du, tri…. começou a contar sabe-se lá atendendo a que sorte de associações: a menção às horas, talvez.

In portuguese – emendou solidária a da janela, contente por poder se redimir, one is: um;

In speranto: unu

Two is: dois;

Du, in speranto;

Three is: três;

Tri

Four: quatro;

Kvar

Five: cinco;

Kvin


Six: seis… – english too has its roots in latin… E assim foram desfiando os números até chegar a dez: dek.

A senhora russa contou estar voltando de um congresso de esperantistas que, a cada ano, era deslocado para uma cidade diferente. Esse ano fora a vez de Fortaleza.
De fato, dias antes, a passageira da janela subira no elevador do hotel com três congressistas, dois europeus e uma oriental, conversando com desenvoltura numa língua meio rascante em que sons próximos do português povoavam as frases. Formidável – pensou consigo mesma, ainda no elevador – poder contar com um instrumento de contato assim – universal–, sem nenhum sentido de sujeição a qualquer espécie de domínio de um país sobre outro.

Entre Brasília e o Rio outro lanche e novo companheiro, na fileira 6: um americano altíssimo, obeso também – passando muito dos cem quilos – que conseguiu se acomodar com certa desenvoltura ao lado da senhora­ russa, para espanto dos que acompanharam a cena daquela montanha de carne dobrando cuidadosamente até o assento.

– Meu de Deus! – pensou a ocupante da janela –, nem a mais a fantasiosa das previsões poderia juntar, no mesmo voo, lado a lado, dois vizinhos tão solidamente erigidos!

A viagem prosseguia tranquila e os dois gordos se mostraram, até o fim, companheiros cômodos e discretos. E ainda uma vez a esperantista deu conta de toda a refeição escorregando os dedos destramente por entre os pacotinhos, num intervalo de menos de uma hora e meia do lanche anterior pedindo, nítida, de novo:

Orange! – ao sentir a proximidade da aeromoça, servindo.

Aplacada a gula, trocou mais duas ou três palavras com a vizinha da esquerda, sempre naquele misto de inglês e esperanto, caindo no sono até o Rio, não sem antes comentar:

– Rio to you will be finos. I have, yet, a day and a night till Moskowa.

Cerca de três quartos de hora depois, acordando, a senhora russa foi acometida por grande ansiedade quando, ao abrir o compartimento de bagagens sobre a poltrona, não conseguiu encontrar a sacola. Nenhum funcionário da companhia aérea à vista, para ajudar.

My lugage! – soltou num pedido de socorro lançando a quem ouvisse.

A viajante da janela deu uma leve chamada nos comissários que, então, passaram a se ocupar da senhora.

– Se tinha mais bagagem? – não. Só aquela.

Minutos depois, fora do avião, já no corredor de trânsito, podia se ver a russa em pé, agarrada na sacola, bengala na mão, boné sujo enterrado na cabeça, assistida pelos comissários, esperando para ser levada ao voo de conexão.

Cega, descomunal, aparentemente assexuada, feia, suja, malcheirosa e só. Participando, no entanto, de um movimento de caráter universal que, com certeza, buscara para poder estar com seu semelhante.

Corajosamente apegada à vida e driblando as enormes limitações que o destino lhe aprontara, transitava com segurança entre oceanos, certa da solidariedade que faria brotar pelo caminho.

Leia também

O site da Ouro Sobre Azul utiliza cookies e tecnologias semelhantes para ajudar a oferecer uma experiência de uso mais rica e interessante.