Maria do Carmo

– Do meu pai só conheci o chapéu.

Desse jeito – riso doce, discreto, expressão concentrada na narrativa –, Maria do Carmo começava a desfiar a infância e a juventude passadas numa fazenda em Cataguases. A mãe, os quatro irmãos e ela sobrevivendo duramente na casa em que o chefe, por bom tempo, se dividiu entre eles e outra família formada não muito longe da família original. O chapéu ficava pendurado em algum lugar da parede, perto da porta de entrada, esperando pelo dono que ia e vinha, indeciso. Maria do Carmo e Benedito, os dois menores, nunca puderam usar a palavra – pai – para se dirigir ao homem ausente de quem não chegaram a reter a figura. E uma das mais velhas, Isabel, teria morrido inconformada com o abandono, aos 10 anos.

– Bernardina, seu marido está com uma porção de filho com outra mulher.

Quando o pai voltou, com a cara de santo, o fazendeiro interferiu e não deixou ele fazer mais filho na mãe da Maria do Carmo. E depois da quinta gravidez, no intervalo das idas e vindas, a mãe se convenceu, pôs um ponto final na hesitação – na dela e na dele – e despachou para sempre o marido, passando a cuidar sozinha de todos: Margarida, Evaristo, Sebastião, Nair, Maria do Carmo e Benedito. Que, por sua vez, também cuidavam da mãe ajudando na casa e vendendo a força de trabalho para os patrões, na lida com a criação, com a cana, o milho e os cafezais. Começavam meninos ainda, 10, 11 anos. As mulheres, quando mais taludas, eram absorvidas como cozinheiras, pajens, arrumadeiras, copeiras, qualquer das muitas funções do serviço doméstico, no cotidiano dos proprietários rurais abastados, como era hábito de norte a sul, no Brasil.

Seguindo esse destino, com cerca de 18 anos Maria do Carmo foi para Cataguases trabalhar na casa da cidade da patroa e, de lá, para Leopoldina, ali perto, para servir como arrumadeira de outra. Em Leopoldina ficou por quatro anos vindo, com 22, para o Rio, sempre como pajem, passando a cozinheira algum tempo depois. E por causa da natureza afetuosa, se apegou muito à menina de quem cuidara, mas não a ponto de evitar um desentendimento sério com a patroa que, a partir de certa altura, parou de lhe dar o ordenado alegando aperto financeiro. Então, muito menos em causa própria do que por obrigação com o compromisso sagrado de mandar, todo mês, dinheiro para a mãe, Maria do Carmo tomou a iniciativa de arranjar outro emprego na cidade grande onde não conhecia ninguém, a não ser as irmãs mais velhas – Margarida e Nair–, empregadas em casas de família como ela.

Arranjou nova patroa de quem passou a gostar muito e a patroa a gostar dela, do mesmo jeito, como sempre acontecia porque Maria do Carmo era especial. Ocorre que essa senhora, numa determinada altura, precisou mudar para São Paulo insistindo muito com Maria do Carmo para que fosse com ela. Que não foi, saindo à cata de emprego mais uma vez. Acabou indo parar na casa de uma gente de boa índole onde ficou perto de cinco anos. Mas essa família também precisou mudar para São Paulo e também fez de tudo para levar Maria do Carmo. Como da vez anterior ela não foi e se empregou na casa de uma gente morando ali mesmo, no prédio onde vivia, que a observava há tempos, de longe, e tinha cobiça por ela como qualquer patrão ou patroa que estivesse habituado a cruzar com a figura altíssima – quase 1.80 cm –, gentil, comunicativa, afável com todos e inspirando grande confiança por conta da inigualável distinção: tinha a altivez de uma rainha africana. E nesse emprego ficou por um curto espaço onde, como das vezes anteriores, se apegou à menina da casa, de acordo com seu feitio. Contava, anos depois que, lá, dormia numa cama de armar e o colchão era um amontoado de jornal velho espalhado em cima pelos patrões, um casal estrangeiro com a filha única. E desse emprego relutou muito em sair por conta da razão de sempre: o afeto pela menina.

Quando foi em 1968, Maria do Carmo foi procurada por uma moça recém-casada – um mês de casamento apenas – com quem convivera longamente na casa da tal família de boa índole e tinha perfeita noção da joia que ela era, conseguindo atraí-la com uma oferta de trabalho decente. A moça, agora com casa para cuidar, era um zero à esquerda em matéria de prendas domésticas, mal sabia pôr uma água para ferver no fogão e precisava muito de alguém com a eficiência que Maria do Carmo tinha de sobra. Além de grande cozinheira, era impecável com a limpeza e a roupa para lavar e passar. E ela aceitou trocar de emprego mais uma vez, sentida por ter de abrir mão da menina, cuja amizade contava mais para ela do que o desconforto da cama de lona forrada com jornal, onde dormiu, heroicamente, por cerca de dois anos.

Na casa da moça e do marido Maria do Carmo ficou de 1968 a 2008 ajudando ambos – muito meninos e inexperientes ainda –, a criar as duas filhas que viu nascer, marcando profundamente o pequeno grupo familiar com sua qualidade humana e profissional, ajudando a conferir certa paz a um cotidiano que certamente teria sido menos harmonioso caso não tivesse contado com a luz e a bondade emanadas por ela, ano após ano.

– Lá na fazenda a gente tomava galope de marimbondo, tinha muita surucucu e escola era no cabo da enxada. Carreguei tanta roupa, em menina, que acabei fazendo um calo no alto da cabeça. A gente andava descalça e, para a lida na plantação, a mãe fazia duas mangas soltas e amarrava no ombro para a cana não cortar os braços. Senão, depois, nem dava para tomar banho de tanto que ardia.

Maria do Carmo era louca por boneca e as duas meninas volta e meia davam para ela aquelas com que não achavam mais graça brincar. Ela cuidava como se fossem crianças de verdade: fazia roupinha, penteava, limpava e punha todas, uma ao lado da outra, numa estante que tinha no quarto, enfeitando.

– Eu só tinha boneco de espiga de milho. Então, para ter um de verdade, quando ia na feira com meus irmãos não comia nada, nem doce: guardava o dinheiro todo. Juntei, juntei, juntei e um dia consegui comprar o José Darci.

Nome dado a um bonecão de celuloide cor-de-rosa, careca, quase do tamanho de um recém-nascido para quem Maria do Carmo fazia camisa, sapato, macacão: o José Darci andava sempre muito bem-vestido e esteve com ela – que nunca casou nem teve filho – até o fim.

Tinha tendências artísticas, certamente. Não que inventasse histórias do arco da velha para as duas meninas – perto de quem se manteve até a mais velha casar aos 30 e alguns anos –, não inventava. Nem tinha o hábito de fazer desenhos com elas. A força da imaginação aparecia nas colchas coloridas feitas ora com retalhos, ora de maneira mais elaborada, juntando umas às outras umas circunferências chatas de tecidos, que também aprontava com capricho, costuradas à mão nas mais variadas cores e estampas. Bolinhas e mais bolinhas coloridas, umas pegadas às outras, resultando em superfícies de grande beleza.

Maria do Carmo era corajosa e independente. Trabalhou desde cedo, deu conta do próprio sustento, ajudou a mãe, o irmão caçula e uma penca de sobrinhos.

Comprou a casinha na zona norte do Rio – Costa Barros – onde viveu depois de se aposentar; teve o INPS e o plano de saúde assegurados e nunca pesou em ninguém, arcando com as despesas do próprio enterro, coerente com a conduta da vida inteira pela qual passou de forma discreta, generosa, sempre dando muito mais do que recebia.

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