O fastio do diabo

O Diabo andava muito desmotivado imerso num vermelho eterno, num excesso monocromático que não estimulava em nada as inquietações mentais dele. O tempo todo tudo igual, nenhum pontinho à volta que não fosse vermelho sangue, vermelho escuro, vermelho puxado para cor de abóbora, para o azinhavrado, para roxo ou grená; vermelho alguns pontos acima do cor-de-rosa ou abaixo do marrom, mas sempre correndo no trilho de um matiz apenas. Na verdade essa tinha sido uma das condições impostas por Ele – Ele sempre Ele!, esbravejava o Diabo num destempero mudo em meio ao tédio – quando fecharam as negociações acerca da área de influência de cada um. Agora, passados milênios, o acordo não estava mais funcionando porque o marasmo cromático prejudicava demais a imaginação, a inteligência e um tanto de iniciativas a cargo das potências subterrâneas. Vai daí, o impulso infernal para a prática das inumeráveis categorias de malefícios tendia a ficar cada vez mais aguado. Como, diabos, não se dera conta, na ocasião, deixando passar o sentido sibilino da cláusula!, vociferava sozinho, isolado de tudo no encontro silencioso com ele mesmo, sendo levado, muito a contragosto, a admitir certa superioridade do campo adversário, Ele à frente. Porque no ato da assinatura dera mais atenção a outros pontos e se armara de tal maneira contra a eventualidade de ser passado para trás em inúmeras questões, polvilhadas com extrema perícia ao longo da redação, que acabou não percebendo o poder acabrunhante do vermelho ininterrupto. Jogada de Mestre! Empregar uma tática assim, suave, gradativa, dissolvida no fluir dos milênios para, muito lentamente, condenar à inércia a base em que se assentava o empenho pelo mal absoluto, razão de ser dos esforços e atividades infernais disparados, uns em seguida às outras, do reino sombrio onde vinha dando as cartas desde o princípio dos tempos.

Tudo bem: Ele havia feito certa concessão redigindo­ um artigo segundo o qual durante uma semana, nos 360 dias do ano, o Inferno inteiro poderia se tingir com todas as cores do espectro. Certamente apoiado nas aptidões ilimitadas que os seguidores não hesitavam em lhe atribuir, previu o estrago da monocromia e inventou essa tal semana colorida por pura misericórdia, sentimento detestável, diga-se de passagem, que a ele, Diabo entre os diabos, causava náusea profunda. Ainda que lucrasse e muito, precisava reconhecer, com o intervalo das cores: na pequena vigência delas a sensibilidade ficava mais aguda e a eficiência para o mal, afiada. Mas era muito pouco. Dava só para uma quantia ridícula de iniquidades que não o satisfaziam, mesmo se praticadas nas contundências paroxísticas a que sempre estivera habituado.

Pois então, quando deu por si, séculos e séculos do contrato firmado, o Diabo tentou em inúmeras ocasiões renegociar o tal artigo sem o menor sucesso. N’Ele, a pertinácia inquebrantável era conhecida: quando embicava fosse no que fosse em uma das muitas direções oferecidas pela eternidade, não havia o que o fizesse mudar. Quer dizer, sem chance de que abrisse mão de uma cláusula como aquela, cuidadosamente enxertada entre os inúmeros parágrafos do texto, com a acuidade fina de que sempre fora capaz na redação de contratos de toda sorte, geralmente fundamentados nos textos que os discípulos de seu filho foram escrevendo e largando para trás, um depois do outro, assim que Jesus partiu dessa para outra muitíssimo melhor.

Maldição, continuava o Diabo colérico no diálogo mudo com ele mesmo, abandonando por breve hiato o fastio e pondo no lugar sentimento mais afinado com a natureza profunda dos entes de sua particularíssima espécie, tendo certa dificuldade para entender a causa de tanta reverência. Pensando bem, o filho de Deus jamais correspondera, de fato e ponto por ponto, às maravilhas que sempre lhe foram atribuídas. Para começar era gabola, cheio de si e egocêntrico, defeitos evidentes a se dar crédito ao Evangelho. Lá, estava registrado, ficava o tempo todo desfiando vantagens, uma atrás da outra: Eu sou a luz! Sou o caminho! Fora de Mim não há salvação! E por aí afora passando longe da verdadeira cortesia. Afirmações desse tipo cabem melhor nos pobres de espírito e não são próprias de indivíduos bem-educados. A polidez pressupõe, entre outras condições, extrema discrição acerca das próprias qualidades e quem sai por aí se vangloriando, enaltecendo a si próprio, não passa de casca-grossa vulgar. Como os discípulos não perceberam isso a tempo dando um jeito no texto, amenizando o excesso de autocomplacência? Francamente, comprometia muito… Ainda por cima, convenhamos, o pai não primava pelo caráter, coisa sempre complicada porque traços negativos no chefe costumam comprometer, de um jeito ou de outro, a formação dos membros de todo um grupo familiar. Mostrou ser omisso, muito apegado ao bem-bom, acionando os dispositivos de controle lá do alto, no conforto dos reinos de hidromel, a salvo da brutalidade que tinha custado muito justamente a ele, Diabo, espalhar e manter desde priscas eras. Por que não veio enfrentar o escárnio, as chicotadas, a coroa de espinhos, o peso da cruz para lavar os pecados do mundo como dizia ser imprescindível? Não veio e mandou o filho para sofrer como qualquer alma penada de último grau, dessas que entopem os intermináveis chãos do inferno.

Dando curso ao pensamento indo e vindo em torno do que, inegavelmente, era uma formidável derrota, entrava dia, saía dia e o Diabo continuava tão desligado das próprias funções que os doutos do Inferno começaram a temer pela eficiência de seu poder para o aviltamento dos espíritos, nos graus violentíssimos de que sempre fora capaz. Não havia nada que pudesse arrancá-lo do mais absoluto fastio tanto em relação às questões atinentes aos próprios domínios, quanto a seu campo tradicional de trabalho espalhado sobre a extensão terrestre. E como fosse um déspota para lá de esclarecido, armara uma estrutura político-administrativa tão eficiente que o cotidiano infernal andava sozinho, alimentado pela sábia matriz implantada fazia centenas de séculos com o objetivo de reservá-lo apenas para a função de engendrar maldades, acionando-as incessantemente, e para o cultivo do espírito, sempre na busca do aperfeiçoamento de uma negação absoluta de tudo. Quer dizer, esse afastamento do governo infernal não colocava, a bem dizer da verdade, um problema prático. Estava sendo encarado pelas autoridades infernais basicamente como problema moral, e aí a coisa se tornava grave porque não era admissível que uma crise com essa origem ameaçasse a raiz da própria perversidade.

Para piorar, nos últimos tempos o Diabo vinha sendo confrontado com a evidente brandura dos métodos que haviam feito sua fama, quando comparados aos graus inimagináveis de torpeza a que estavam sendo levados os humanos, muitíssimo melhor equipados para o aniquilamento de ideias, seres vivos ou inanimados, do que as eficientes brigadas da noite eterna sob seu comando. Qualquer terrorista de quinta ordem, em qualquer latitude, estava se mostrando mais capaz para a destruição do que a maior parte dos venerandos decanos de seu exército. Outra derrota, portanto.

Começava a perder em contundência para os homens e as mulheres, nas ações cujo objetivo fosse destroçar o que encontrassem pela frente; impulso, aliás, que os movia de forma absolutamente intempestiva e indiscriminada. Ele, Diabo, não costumava agir nem patrocinar nada sem, primeiro, estabelecer as justificativas e medir as consequências, operando a partir de cálculos precisos e métodos de cunho racional. E essa era uma diferença e tanto, embora, a um desavisado, pudesse não parecer à primeira vista. Não se conformava com o que haviam aprontado recentemente em Palmira: destruir obra de arte era absolutamente proibido a qualquer membro das suas hordas malditas. Um templo pagão! Monumento histórico, joia de uma cultura que nem existe mais! Pura barbárie! Odiava gente tacanha e, se pudesse, viveria cercado de objetos bonitos, pinturas, esculturas, desenhos das melhores safras de seus artistas preferidos para ajudar a manter viva a inteligência, porque de cretino não tinha nada e sabia muito bem para que servia a arte. Não era à toa que fora posta aquela cláusula no contrato porque além d’Ele ter, também – e tal seria se não tivesse –, perfeita consciência do imenso poder da criação estética, sempre se mantivera atento às maquinações diabólicas. Tinha consciência, e nisso também estava certo, de que, servido pelas multidões de falsários abrigadas nos domínios infernais, em três tempos ele, Diabo, despiria todas as melhores instituições terrestres das obras de sua preferência, levando-as para o Inferno e pondo no lugar cópias perfeitas. Iniciativa que lhe traria, além do prazer indizível da fruição dos originais, a alegria de passar a perna nos da Terra.

Mas nas circunstâncias a que estava constrangido, impossível. Era só transpor a soleira do Inferno para tudo ficar vermelho. Imaginem só a Vitória de Samotrácia rubra das asas aos pés! Ou qualquer dos jardins de Monet emplastrado em tons de vermelho! Então, a única forma de contemplação que lhe restava, em se tratando das artes visuais era se transformar em humano – homem ou mulher, dependia da circunstância – e fazer o périplo dos museus: conhecia todos de cor e salteado e suas escolhas recaíam sempre nos melhores, percorrendo-os de alto a baixo pelo menos três vezes por ano.

Agora, convenhamos: duas derrotas juntas dessa dimensão seriam mais que suficientes para lançar qualquer demônio cônscio das suas responsabilidades na mais absoluta depressão, alimentando sentimentos de impotência em alto grau. Imaginem acontecendo com o Diabo em pessoa?!

Sendo assim e por conta das derrotas que o acabrunhavam seguia o Diabo mergulhado na mais completa inapetência quando, num dado ponto da eternidade, descumprindo ordens para que não o incomodassem, bateram com insistência por bom tempo na porta dos salões vastíssimos em que ele escondia os infortúnios. E como nada indicasse que fossem desistir, atendeu furioso, soltando, literalmente, fogo pelas ventas.

– Mestre, a junta médica que tem assistido o senhor insiste em vê-lo…

– Mas eu dei instruções expressas para não me incomodarem! Por acaso aconteceu alguma coisa que justifique essa intromissão?

– Os doutores parecem achar que sim… – continuou o pobre diabo mensageiro tremendo de cima a baixo amedrontado com o teor do rompante: passados séculos, não se habituava a ele de jeito nenhum…

Mal o Senhor das Trevas tinha recolhido suas labaredas, três diabões enormes, chifrudos e rabudos, lombos tomados por escamas vermelhas, ásperas, ventres cobertos por um pelame basto, vermelho também – aproveitando, forçaram o vão da porta fazendo-se de avoados, afastaram delicadamente o Diabo – magro, mais para baixo, compleição delicada, sempre rescendendo a água de colonia, elegantíssimo num de seus caftans de brocado rubro guarnecido por rubis e fios de cobre, cascos cuidadosamente aparados, lustrosos de tão limpos – e foram indo aposentos adentro.

– O que é isso? – reagiu o chefe deles todos, aos gritos. – Uma invasão?

– Ora, Mestre, calma, o senhor anda muito desgastado… Viemos com boa notícia…

– Boa notícia? Nesses tempos e nessas profundezas? 

– Mas é verdade…

– Que notícia?

– Um dos nossos acaba de voltar da visita de cerca de cinco séculos a um daqueles países austrais a que o senhor não costuma dar atenção…

– Tal seria! Viveiros de gente inepta! Não conseguem criar nada que instigue nenhuma inteligência minimamente cultivada!

– Pois a questão é essa, Mestre, e se refere ao meio natural e aos habitantes de um dado país, nessa região…

– O senhor poderia se fazer mais claro? – soltou exasperado, bufando alto para o diabão médico que parecia estar à frente da tentativa de lhe mudar o humor.

– Pois não, Mestre… Ocorre que o tal emissário chegou num estado deplorável: chifres caídos, cada qual para um canto, trôpego, exalando um cheiro estranhíssimo próximo do álcool e batendo os cascos no chão movido por uma espécie de tambor que ele toca sem parar em ritmo frenético, fazendo com que todos, à sua passagem – nossos quadros regulares e até as almas penadas –, sejam contaminados pelas batidas, tentando o mesmo sapateado que ele parece dominar perfeitamente mas que é, na verdade, muito difícil para quem não tenha algum treino…

– Sei, e daí? – perguntou o Diabo com grosseria, no auge da irritação.

– Daí que esse emissário, tirante o aspecto desleixado e os hábitos estranhos, parece ter feito lá um bom trabalho e achamos que o senhor ficaria mais animado ouvindo o que ele tem para contar…

– Como, exatamente? – exigiu autoritário, sempre fiel ao compromisso com a precisão, mas já em vias de se desarmar, interessado no assunto.

Percebendo a ligeira mudança de ânimo, mais que depressa um dos outros dois da junta médica saiu e voltou, no ato, trazendo pela mão um diabo magrinho, gesticulação nervosa, agarrado no tal tambor, chifres menos desalinhados, hálito melhor, aspecto passado a limpo e mais apresentável para o encontro.

Depois de uma reverência profunda o serzinho se aprumou emocionado: era a primeira vez que ficava cara a cara com o Demônio!…

– Então, parece que você tem coisa para me contar…

– Mestre, espero, de fato, possa ser do seu interesse o relato dessa minha passagem por região tão suis generis onde, modestamente, cheguei a bom resultado…

– Teve ajuda?

– Lá não há precisão de muita ajuda. A desordem, entre outras condições, favorece demais o malfeito: um de nós apenas, agindo de forma aplicada, consegue dar conta do recado sem problema.

– Explique melhor…

– Espero que consiga entender, Mestre… Pelo fato de nunca ter estado num lugar parecido talvez surjam alguns entraves, mesmo para quem é servido por uma acuidade portentosa, como vem a ser o seu caso…

– Menos rapapé, por favor, e vamos aos fatos.

– Sim, senhor.

E voltando-se momentaneamente para o resto da plateia atrás de um apoio que o Demônio parecia relutante em lhe dar, o emissário das sombras continuou:

– Para que se tenha ideia de como o quadro é intrincado, tentando me situar gastei perto da metade dos 516 anos que me foram postos como limite de intervenção…

– Por que isso?– perguntou de novo o Diabo.

– Vou ver se consigo dar conta de responder à sua pergunta dividindo minha exposição em dois blocos – soltou o emissário voltando de novo a se dirigir, basicamente, ao Senhor dos Abismos. No primeiro, tentarei me deter um pouco nas condições naturais da região, na verdade, um país imenso; no segundo, esboçar, alguns traços da maneira de ser dos que vivem nela.

– Parece bom, didático – reagiu o Diabo mais atento, sentando num dos inúmeros sofás de veludo cor de vinho espalhados pelos salões e pedindo aos demais que fizessem o mesmo, ao emissário recém-chegado, inclusive, até mesmo ao pobre diabinho trêmulo que lhe batera à porta anunciando a visita da junta médica. Porque o Mestre era assim, ciclotímico, inesperado, oscilava da raiva absoluta à mais sedutora das simpatias. Difícil de lidar!…

– Mas, como eu ia dizendo – retomou o emissário das sombras ao país austral, preferindo ficar em pé de frente para a pequena audiência, tambor no chão, junto dele, mostrando grande segurança, com certeza das razões pelas quais havia sido tão bem-sucedido em sua missão –, trata-se de um lote de terra incomensurável, praticamente um continente, dada a extensão, e tem um solo previlegiado no qual, de alto a baixo, “em se plantando, tudo dá”, conforme eles mesmos costumam dizer. O diabo, opss! perdão, Mestre, é o hábito depois de tanto tempo entre os habitantes daquela região… – estancou sem graça, olhando para o Demônio. Quero dizer, o problema é a maneira como essa dádiva foi e continua sendo tratada porque a terra permanece de uma fertilidade impressionante num clima perfeito. Mas tanto se a maltratou, tanto se queimou a mata, tanto se emporcalhou tudo quanto foi rio, tanto se dizimou campo e floresta, tanto se incomodou o mar, tanto se matou bicho de todas as espécies, tanto se pescou de forma indiscriminada, tanto se cavucou o chão atrás de minério precioso que agora os desequilíbrios são evidentes, muitos, irreversíveis.

– Formidável! – exclamou o Diabo já francamente interessado, acomodando-se na ponta do assento, não sem antes ajeitar o lindo caftan de forma a não amássa-lo demais embaixo do próprio entusiasmo. – Isso tudo com intervenção sua?

– Muito pouca, Mestre, muito pouca…

– Sei… – soltou o Diabo, ar pensativo, olhos sem ver nada mergulhados em uma das paredes do salão, com certeza maquinando alguma…

– No princípio, há exatos 516 anos, havia menos gente por lá e a região tinha o estatuto de colônia: veio a ser autônoma muito depois. E embora a conduta, de um modo geral, tenha sido sempre predatória, o estrago não era preocupante se a gente pensar no tanto de natureza que se mantinha, apesar de tudo, em pé. Mas os anos foram passando, a população crescendo, multidões de africanos foram trazidas para o trabalho escravo, até não servirem mais como solução para a lida na lavoura, quando os dirigentes se voltaram para a imigração dando entrada a hordas humanas de todas as origens e etnias. Ou seja, houve um aumento considerável da população inicial que era formada basicamente pelos donos da terra – os índios – e pelo poucos europeus que foram dar naqueles costados.

Voltando ao meio natural, mais diretamente à questão energética, consegui, numa determinada altura, desviar o interesse dos que tocavam o país. Desloquei esse interesse de certas culturas agrícolas, que forneceriam energia limpa e renovável, aproveitando a tendência imperante para degradar a natureza. Fiz com que se voltassem para uma outra fonte energética de produção mais cara e difícil, levando-os a poluir e esburacar a plataforma marítima atrás de uma substância que vai se exaurindo na Terra e começa, inclusive, a ter o preço aviltado no comércio internacional, por conta de interesses que fogem ao controle dessa minha zona de influência. Ou seja, provoquei uma troca fazendo com que, dali para a frente, tudo evoluísse de mal a pior. Fora o fato de que para cuidar de todas as implicações ligadas a essa substância, mantém-se lá uma empresa que chegou a ser das maiores no setor, em escala mundial, onde com êxito e sem esforço plantei uma caprichada cultura da corrupção a ponto de levar a companhia praticamente ao aniquilamento. E isso, graças à ajuda maciça não apenas de quem a dirigia, como também dos que negociavam com ela. Quando vim de volta aqui para o Inferno deixei instalado um desacerto tal que, hoje, ninguém saberia dizer, em sã consciência, se essa empresa conseguirá sobreviver, apesar da solidez que apresentava até relativamente pouco tempo: era a maior do país e suas ações disputadíssimas na Bolsa de Valores.

Quanto à industrialização, chegou-se tarde a ela, mas chegou-se e, aí, as coisas começaram a encrespar de vez sempre contando, é claro, com minha discreta presença porque, como já disse, nunca precisei usar de muito empenho: a população, lá, é mais para dessorada, circunstância que ajuda bem no rumo do malfeito. De qualquer forma, a partir do momento em que me senti pronto a passar de observador a agente, nada de importante aconteceu sem que eu tivesse posto a mão.

– Interessante… Muito interessante… Mas é curioso… Existe um país setentrional, onde estive inúmeras vezes, diga-se de passagem, que, em linhas gerais, mostra uma composição parecida embora tenha se tornado, apesar disso, uma grande potência… Também foi colônia; também precisou lidar com uma população nativa que deu trabalho para ser dominada; também teve escravidão de origem africana mais ou menos no mesmo período; também recebeu quantidades inimagináveis de imigrantes de todos os cantos, mas lá as coisas deram certo…

– É aí, Mestre, que entro no segundo bloco da minha exposição para dar conta dessa diferença que o senhor observa muito bem. Mas, antes de ir a ele, fiquemos mais um pouco na indústria. Como eu ia dizendo, a coisa piorou muito para o ambiente natural quando ela chegou porque as precauções devidas, as mesmas normalmente tomadas nos países do norte – de onde elas vinham e de que o Mestre gosta tanto –, não foram tomadas na minha zona de influência por algumas razões fáceis de entender. Em primeiro lugar, como já mencionei, o absoluto descaso com a natureza dando, lá, a falsa impressão de ser indestrutível; depois, o abuso das economias ricas que, a partir de acordos pendentes para os interesses delas, despejam seguidamente, lá, procedimentos e materiais condenados em seus países, deixando, na passagem, rastos fundos de contaminação; a irresponsabilidade generalizada na lida com os processos industriais, sua implantação e rejeitos; por fim, uma falta completa de senso cívico – ou republicano, para seguir o jargão dos políticos que ocupam o poder no momento – a ponto do interesse público ser sempre vencido pelo interesse privado em todos os setores e escalões, dos mais altos aos mais modestos. Nesse quadro, faz alguns meses, consegui provocar um acidente de proporções verdadeiramente cataclísmicas…

– Como? – perguntou o Demônio excitadíssimo, no que os três diabões da junta médica se entreolharam satisfeitos constatando que a estratégia de chamá-lo à ação estava dando resultado.

– Foi simples. Passados mais de 500 anos, eu já estava afeito ao país, ao povo e aos costumes. Tinha, inclusive, alcançado­ a tranquilidade necessária para definir a hora certa de entrar em cena, embaralhando cada caso num ambiente que, de hábito, se inclina para uma confusa imprecisão. Vai daí, há muito pouco tempo e contando com a ajuda de certo grupo de empresários, representativo desse pouco caso votado à natureza, consegui fazer com que a negligência deles causasse um desequilíbrio ecológico portentoso numa área vastíssima: provoquei o rompimento de barreira em um reservatório contendo rejeitos de minérios altamente tóxicos, destruindo uma pequena cidade, expulsando seus habitantes, matando alguns e comprometendo o abastecimento de água em toda a região. Com isso, consegui aniquilar, por quilômetros, as margens florescentes de um rio no qual foram despejados 62 milhões de metros cúbicos dessa lama contaminada, que arrasou a vegetação e a fauna circundantes destruindo para sempre o prório rio, que atende – ou atendia – pelo nome bonito de Rio Doce, com um curso de 853 quilômetros da nascente ao mar, para onde foi carreada essa massa de alumínio, manganês e ferro, espraindo-se por cerca de nove quilômetros.

Outra frente rica de trabalho tem sido o incentivo ao uso do agrotóxico nas plantações, de alto a baixo, num país de dimensões verdadeiramente exageradas. Lá, o uso extensivo dos pesticidas vem contaminando solo, frutas, folhas, legumes, raízes e os próprios agricultores, muitos deles inutilizados de maneira irreversível para o trabalho e para a própria vida, graças a um envenenamento progressivo que chega a levá-los à morte. Sem insistir demais, para não passar por contador de rodela, tenho agido na destruição crescente da maior floresta tropical do mundo, nativa do país, e que também vem sendo alvo de tantas e tais agressões – grande parte com minha intervenção direta – que, em alguns anos, no lugar dela, espero possa se estender um aridíssimo deserto.

O elemento humano, por sua vez também tem pesado no abastardamento do país. Assim como a natureza vem aos poucos sendo aviltada, entra ano, sai ano, coisa equivalente acontece com os homens e as mulheres. Lá, o branco de origem europeia se misturou sem muito problema tanto com o negro africano, quanto com o indígena, que já estava quando os colonizadores chegaram, no mesmo ano de 1500 em que eu cheguei também. Acontece que além desses três grupos, nos quais repousa a mistura original, o país recebeu muitos outros nessa dança da miscigenação e com um resultado único a ponto de se poder afirmar que estão representados, lá, todos os tipos físicos possíveis ao ser humano, na gama do mais claro – cabelo louro, olhos azuis e pele avermelhada –, ao mais retinto dos negros, passando por matizes intermediários quase infinitos. Ou seja, o povo do lugar se adiantou à tendência atual da mescla entre as raças, em curso na Terra, e que, nessa minha área deu-se de forma tranquila, ao contrário, diga-se de passagem, do que acontece nos países setentrionais que o senhor tanto aprecia, Mestre, e para onde costuma ir.

A resistência maior está na absorção do negro e asseguro ter trabalhado intensamente para barrá-la. Nas outras frentes, apesar de muito empenho, não consegui grande coisa. Mas no tocante ao negro, provavelmente por ter sido escravo e abandonado à própria sorte logo depois de liberto, emborcando na tendência à desclassificação social por falta de oportunidades decentes de sobrevivência, a situação é frágil e eu tento explorá-la de todas as maneiras, o tempo todo, calcando nos obstáculos que eles vêm enfrentando por todos esses anos. Mas até mesmo no caso deles, o preconceito é menos de origem étnica do que social já que a mistura determinou tipos escuríssimos nas próprias classes dominantes que, por integrarem os estratos da elite, apesar de negros passam perfeitamente por brancos.

– Não! – deixou escapar o Diabo, espantado – mas trata-se de lugar realmente suis generis!

– O senhor ponha suis generis nisso, Mestre! Então, resumindo, não fossem os impedimentos já mencionados e aqueles aos quais passarei agora, tanto a natureza perfeita quanto o elemento humano mesclado de forma harmoniosa dariam a base para a construção de um grande país e de uma cultura muito interessante.

– E você é um excelente expositor – soltou encantado o Demônio interrompendo o emissário que agradeceu com outra grande mesura, vergando-se todo a ponto de quase dar com o nariz no tapete felpudo de um vermelho levemente acobreado.

– Mas me diga uma coisa: qual a sua formação?

– Praticamente nenhuma. Saí daqui muito cedo para assumir meu cargo apenas com a instrução dada a qualquer diabo aprendiz…

– Mas então nosso ensino elementar está de parabéns! Você se exprime com uma clareza, uma fluência notáveis! Não foi à toa que me empenhei tanto em afiar nosso sistema educacional: sabia da importância de uma boa escola para a prática eficiente dos princípios básicos de negação. E você mostra ter capacidade para planejar e a frieza indispensável para o exercício sistemático de ações tramadas nas sombras.

Quanto mais o Diabo se entusiasmava, mais a junta médica se entusiasmava junto, feliz com a metamorfose rápida.

– Obrigado, Mestre… A propósito, o senhor acaba de tocar na causa principal da fraqueza daquela gente…

– Qual?

– Carência de educação. Os que mandam e decidem nunca tiveram atitude igual à sua. Lá o ensino, de modo geral, sempre foi relegado ao último estágio das preocupações: tudo, mas tudo mesmo, vem na frente. Resultado, embora a índole seja, de modo geral, boa, a grande maioria dos indivíduos é de uma precariedade mental assustadora. Por isso, nesse setor, nunca precisei mover uma palha: eles marcham para o abismo por conta própria.

– Que falta de visão…

– É…

– Mas foi sempre assim?

– Sempre, Mestre.

– Existe uma causa para isso?

– Várias. Mas a que salta à vista é a crueldade das camadas dominantes.

– Crueldade? Mas é o nosso território…

– Neste quesito, lá, os que estão por cima são páreo duro para as brigadas aqui de baixo.

– Sei… – e o Diabo voltou a perder o olhar nas paredes vermelhas, desviando a atenção do relato.

A junta médica exultava. Nem nas melhores previsões teria antecipado efeito tão positivo no humor do chefe. O diabinho de recados, por sua vez, muito à vontade num sofá macio de veludo, exultava também por outras razões, satisfeito com a companhia, o ambiente elegante e por estar sendo recebido como um igual. Cruzava e descruzava as pernas ajeitando seguidamente a cauda; passava com insistência os cascos ásperos e maltratados no braço do sofá para sentir a maciez do veludo, sem disfarçar o exame detalhado para cima dos salões, normalmente inacessíveis a quadros burocráticos modestos, como era o caso dele.

Já nosso expositor, continuava à vontade, perfeitamente dono de si numa espécie de falta de cerimônia trazida dos quinhentos e poucos anos de convivência com os nativos da tal região, onde hierarquia e formalidade nunca foram levadas muito a sério.

– Mas como eu ia dizendo – retomou ele –, se fosse possível juntar o potencial extraordinário daquela natureza ao potencial único do povo tão cordialmente miscigenado, por certo se alcançaria a melhor expressão a que pode chegar um país. Graças em parte a meu empenho isso não tem sido possível e, assim como venho contaminando o solo, o ar e a água, venho, da mesma maneira, agindo sobre os homens e as mulheres de forma a impedir que o país alcance o destino bonito ao qual parecia fadado

Nesse ponto, tendo introduzido o pequeno círculo às carências do sistema educacional do país onde atuava como agente desagregador, o diabo mensageiro entrou por considerações mais sofisticadas que pediam nitidez de raciocínio e exposição, tentando um apanhado abrangente, bem difícil de montar. Mesmo assim seguiu firme adiante, tendo o cuidado de se manter nas bordas do assunto – mais para complexo –, evitando, com isso, derrapar na própria argumentação:

– Porque o senhor atente, Mestre, para uma circunstância, lá, bem comum nos casos de ascensão social. Seria de se esperar que alguém saindo das camadas populares e alcançando camadas sociais mais elevadas trouxesse consigo os compromissos essenciais com a extração de origem, não lhe parece?

– Isso faria sentido caso a humanidade fosse movida por sentimentos positivos – reagiu prontamente o Demônio, cada vez mais interessado na tal região e no relato, além de seguro do próprio desempenho à frente das forças do mal. – Mas não é assim. Tanto por conta das inclinações atávicas de homens e mulheres, quanto do empenho incessante de nossas brigadas.

– Justo, justo… Acontece que, lá nessa minha zona, a tendência chega ao paroxismo por várias razões. Inclusive por conta da péssima qualidade do ensino, em todos os níveis, que não favorece a formação de cidadãos críticos e sim de multidões amorfas, mais interessadas em fruir bens materiais do que qualquer outra coisa. Nisso, se uma família de imigrantes de origem operária, por exemplo, ascende, em vez de preservar os valores próprios de sua origem encampa, imediatamente, os cacoetes dessa classe dominante cruel nas mãos da qual certamente terá penado no trajeto rumo à ascensão e, que em vez de tratar, por isso mesmo, com reserva, alça maravilhada a modelo, traço por traço, por odiosos que sejam. 

O mesmo acontece com os nativos do país. Enquanto circulam nos limites de uma categoria social modesta, têm um determinado comportamento; quando conseguem se descolar dela ingressando noutra, mais elevada, esquecem a solidariedade com a origem e se deslumbram, emborcados nos valores dos extratos aos quais estão chegando, valores que tendem a atuar neles como força corruptora, facilitando enormemente o meu trabalho. Para ilustrar, passo a dois exemplos.

No primeiro, certa senhora muito bem-posta, professora unversitária num país setentrional do mundo rico, origem familiar nas classes populares, atravessa a vida contando, satisfeita, que até o avô e por três séculos ininterruptos os dela haviam constituído uma linhagem de açougueiros ativa e respeitada.

Quer dizer, nos países do norte, quando forjada no trabalho decente, a ascensão social não implica, necessariamente, escamoteamento da origem modesta.

No segundo exemplo, ocorre o oposto. Nessa minha área de atuação o avô chega como libertário e o neto acaba fascista, tendendo à compra de algum título papal graças ao dinheiro recente além de, via de regra, adotar os piores hábitos da tal classe dominante que dá as cartas por lá, desde sempre e, ao longo dos últimos anos, vem mudando a natureza de seus membros mas não os métodos com os quais costuma assegurar vantagens e submeter os menos favorecidos.

– Muito interessante… Muito interessante… Mas me diga uma coisa – perguntou o Diabo sempre atento –, você diz ter passado bom tempo observando. Isso quer dizer que, lá, essa maneira de ser dos de cima se forjou e impôs sem interferência sua?

– Pouca, Mestre. Ainda estava me ambientando, por volta de meados do século XVI, quando a escravidão foi adotada como força de trabalho, num ambiente predominantemente agrícola. Então eu apenas incentivava os maus-tratos aos trabalhadores negros, como já tinha feito antes com os indígenas, muito rebeldes e que, logo se viu, não se adaptariam à servidão. Ou seja, de fato não precisei fazer grande esforço porque os vícios de comportamento da classe dominante já vinham arraigados. Mas retive da experiência em açular os ânimos contra negros e indígenas, ensinamentos preciosos que passei a aplicar de maneira sistemática. Tomando os senhores da terra como referência usei todo meu arsenal de malefícios para ir além deles, incentivando a desigualdade econômica e social que vêm a ser o grande problema por lá. Quanto aos entraves a serem semeados para impedir o acesso das classes populares à educação, mantive certa distância disso para não me gastar em ações difíceis e cansativas. Assim, minhas intervenções se faziam não sobre essa carência, mas partindo dela para se concentrar em outras frentes, por assim dizer, derivadas. Porque, sem oportunidades de se educar, menores ainda de conseguir ocupações que lhes permitam um sustento digno, grande parte desse contigente se volta para o crime, que tem aumentado muito, ameaçando o sossego da classe dominante para a qual se voltam de preferência as investidas violentas daqueles, entre os injustiçados no plano social e econômico, que se rendem, por isso mesmo, à sedução do desvio.

– Quadro verdadeiramente diabólico… Mas que lugar…– sussurrou o Demônio, olhos baixos sobre o tapete como se falasse para si apenas.

– Embora seja exagero atribuir esse resultado unicamente a meu trabalho, confesso ter feito esforço para poder apresentar um bom desempenho, no dia em que fosse chamado de volta…

– E conseguiu… Mas responda, por favor, para satisfazer uma curiosidade – continuou o Diabo já completamente aplacado dos furores iniciais, seduzido pelo brilho e pela hábil loquacidade de seu agente –, o que significa esse instrumento de percussão de que você não se afasta?

– Ah!, Mestre! Isso me remete a um pedaço do que eles têm de melhor: certa música em que o ritmo conta demais e na qual jurei, por tudo que existe de mais satânico, jamais interferir dado meu respeito à qualidade que ela tem… Quando começa, cobre tudo com um véu meio alucinado arrancando a quem quer que seja da mais profunda tristeza… Como eu não tivesse ideia dos serviços que, na volta, estariam reservados para mim, trouxe como lembrança e companhia para os maus momentos… 

Ao ouvir a menção a esse antídoto contra a depressão, os três diabões da junta médica se interessaram logo:

– Funciona mesmo? Com qualquer um? Não importa situação? – perguntou meio sôfrego o maior e mais desenvolto dos três.

– Só não atinge quem for feito de pedra…– respondeu o emissário caprichando na expressão de superioridade.

– Podemos ter uma demonstração?

– Os senhores perdoem, mas não me parece que esse seja o momento adequado. E se permitirem, gostaria de continuar o relato que, aliás, já está quase no fim. 

– Continue, ordenou o Demônio.

– Para concluir gostaria de compartilhar com vocês a satisfação de ter conseguido impor, a essa minha área de ação, uma circunstância realmente dramática freando seu destino possível, obrigando-a a caminhar aos solavancos, indo e vindo no tempo em movimentos pendulares de progresso e regresso contínuos, de forma a não permitir que saia do lugar. Ainda assim, ocorreram melhoras pontuais em muitos setores apesar de minhas tentativas em barrá-las. Mas, para usar uma terminologia cara aos intelectuais de lá: “em uma perspectiva histórica”, o movimento é nenhum. O que determinado período faz com uma das mãos, o período seguinte desfaz com a outra. Com isso e talvez graças, em parte, a meus serviços, na falta de um acontecimento inesperado o país, como um todo, estará ingressando em muito pouco tempo e inapelavelmente na zona sombria dos nossos domínios.

– Curioso… – disse o Diabo com uma expressão sonhadora, quase doce – o que você descreve ilustra bem uma história de que eu gosto muito, inventada pelos gregos há séculos, na qual certo infeliz carrega uma pedra imensa nos ombros até o topo de uma montanha altíssima. Mas quando chega lá, a pedra escapa e ele precisa descer e começar tudo de novo empurrando até em cima a pedra que irá despencar mais uma vez, fazendo necessária outra descida e outra subida e assim, por toda a eternidade… 

– Coitado, reagiu o mensageiro condoído…

Nessa altura, há bom tempo já do início da reunião, o diabinho de recados tinha adormecido feliz da vida na maciez do sofá cor de vinho em que havia se permitido espapaçar. Os três médicos seguiam atentos a tudo, com certeza se perguntando quais os recursos a serem providenciados, dali para frente, de modo a manter o Demônio naquele humor positivo. Quanto ao mensageiro, se inquietava não sabendo qual seria a próxima tarefa e, findo o relato, já estava agarrado de novo no instrumento, como se dele dependessem sua alegria além de outros estados de espírito igualmente positivos. Foi o Demônio quem falou primeiro, depois de um silêncio longo, dirigindo-se aos diabões…

– Vocês três avisem lá fora que o sistema terá de funcionar, mais uma vez, sem mim. Estou indo com nosso mensageiro visitar a zona de influência dele para conhecer de perto trabalho tão bem-feito em lugar tão suis generis.

– Mas Mestre, o que devemos dizer, exatamente? – perguntou o diabão maior de todos.

– Que estou saindo para uma de minhas viagens à Terra.

Nisso o diabo mensageiro, exultante, não se conteve:

– O senhor não vai se arrepender! Apesar do meu empenho por todos esses séculos, ainda há muito a fazer para piorar de vez a situação e, na sua companhia, vou ser capaz de atos ainda mais eficientes do que os realizados até agora. Além disso, o país é extremamente colorido! O senhor irá topar com tudo quanto é cor, para todos os lados, o tempo todo!

– Finalmente… – suspirou o Demônio sinceramente aliviado –. E o instrumento? Faça uma demonstração…

– Mestre, já que estamos saindo para lá, sugiro que espere mais um pouco. Vou levá-lo a um lugar em que terá a melhor e mais viva experiência do poder extraordinário do toque conjunto de instrumentos como este. Estou seguro de que não irei decepcioná-lo.

– Onde?

– Naquela cidade que fica embaixo dos braços abertos de uma representação monumental que fizeram d’Ele, talhada no granito.

– Você quer que eu vá a uma cidade que Ele protege? – soltou o Diabo prestes a encrespar de novo.

– Não se preocupe, Mestre. A cidade é a mais violenta e conturbada de todo o país apesar da estátua pela qual, no fundo, ninguém tem respeito nenhum. Trata-se do lugar onde plantei minha sede e Ele, com estátua e tudo, consegue pouco frente às artimanhas que tenho maquinado e posto em prática. A começar pelo embaralhamento que impuz às religiões: seguiam tranquilas no ritmo tradicional e, até muito recentemente, numa convivência antes harmoniosa. Mas consegui espalhar dezenas de seitas ditas evangélicas, congregando multidões de fiéis que vêm perturbando demais o antigo equilíbrio. Além de terem proposto uma ligação com o vil metal mais forte ainda do que todas as outras religiões, anteriores a elas. E é por esse viés que tenho agido, difundindo nosso milenar culto ao dinheiro, ao qual tudo deve se curvar, de acordo com um dos primeiros ensinamentos de sua cartilha. 

– Mas meu caro Senhor das Trevas, retomou o diabão, aproveitando a trégua do mensageiro, sempre respeitoso mas meio ressabiado, temendo uma possível reação intempestiva – precisamos comunicar ao sistema quanto tempo o senhor ficará fora. Já pensou nisso?

No que o Demônio respondeu com a altivez e a serenidade condizentes com as altas prerrogativas de seu cargo:

– Diga, simplesmente, que desta vez estou indo sem data para voltar.

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