O retrato

Ela tem em casa um retrato do pai feito entre 1950 e 1951 por Arnaldo Pedroso D’Horta. Uma tela a óleo em que a pincelada não aparece e os campos de cor são formados por áreas uniformes, camadas muito finas, como se tivessem sido impressos em off-set – a traço – livres dos pontos da retícula tipográfica.

O pai está com um pulôver sem mangas verde quase esmeralda que jamais teve e, se tivesse tido, certamente não usaria. Gravata vermelho vivo saltando contra o azul claro espalhado sobre o fundo, o pescoço e o colarinho, monocromia inventada para destacá-la junto com o pulôver e com o rosto de expressão melancólica inclinado para a esquerda. Por isso a avó implicava com o quadro que, durante bom tempo, esteve num canto, voltado contra a parede para não haver risco dela cruzar com a tristeza do filho. A neta, ao contrário, sempre gostou do retrato e quando pôde deu um jeito de ficar com ele. Desde menina se interessava precisamente por esse desalento, nada ajustado à personalidade alegre com a qual todos conviviam dentro da casa. Intuía de forma difusa que Arnaldo, com o olhar do artista – familiar a todos os avessos – havia representado, na figura do amigo, o compromisso com o inalcançável.

Entrou ano, saiu ano e essa interpretação foi ganhando corpo. De tal forma que todos os dias no café da manhã, frente ao retrato, ela vê renascer o prisma agudo de Arnaldo, socialista como o pai, compa­nheiro de luta e de ideais. Vê reafirmada a sensibilidade que, na melancolia do jovem intelectual, prefigurou a vitória de uma ordem política e social iníqua, muito distante das expectativas de mocidade tanto do modelo quanto de seu pintor.

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