O Tio

Quando a menina era bem pequena a constelação doméstica refulgia nas figuras dos adultos em volta – mãe, pai, avó e tio –, personalidades interessantíssimas e, cada qual na sua intensidade, ocupando os quatro cantos do coraçãozinho dela.

A mãe, linda e quase genial, de tão inteligente, era dedicadíssima mas, mostrando certo paradoxo, tinha paciência mais para curta. 

O pai, um manancial inesgotável de histórias e afeto, vivia tomado pelo trabalho incessante. 

Já a avó, muito voltada para a menina, passava as tardes cuidando dela para os pais poderem trabalhar. Então ficava trazendo lembranças da vida inteira que tinham, para a neta, encanto igual ao dos contos de fadas, encadeados um atrás do outro, todos os dias. Também ensinava o padre-nosso, a passar o fio de linha pelo buraco da agulha, pregar botão, costurar paninhos, fazer cama de gato com barbante e, às quatro horas, dava o lanche, cortando o pão com manteiga em pedacinhos de regularidade geométrica. Depois, o banho, porque a menina custou muito a se ensaboar sozinha. E tinha mais: a avó nunca, nunca mesmo ficava brava, fizesse a menina o que fosse.

Já com o tio era tudo diferente. Bonito, alourado e tímido, se integrava numa linha horizontal à fantasia da sobrinha. Enquanto os outros três vinham de cima, ensinando, o tio alongava a experiência dele na experiência da menina, pondo as duas num plano só e indo de uma para a outra sem solavanco.

Foi ele quem ensinou a brincar de rima. 

Não valia palavra terminada em inho nem ão porque, aí, ficava fácil: era só jogar para o diminutivo ou para o aumentativo que a rima vinha no ato. Cada palavra tinha que estar inteira nela mesma:

– Lebre…

– Casebre!

– Pardal…

– Animal!

– Casa…

– Asa!

– Repolho…

– Zarolho!

Outra brincadeira – a menina já mais grandinha, beirando os oito, nove anos –, era para identificar os pintores europeus do Renascimento ao Dadaísmo, nos belos livros de arte da mãe, editados pela Skira. Com isso ela foi aprumando o olhar, conhecendo os artistas e os períodos, conseguindo distinguir italianos de flamengos, neoclássicos de barrocos e assim por diante, o tio sempre perto, orientando. Ele era desenhista publicitário – diretor de arte – e frequentemente varava as madrugadas em cima da prancheta aprontando um trabalho para o dia seguinte, a guache, aquarela, ou concentrado no cuidadoso desenho dos tipos, a serviço de alguma chamada ou de algum título. Às vezes a menina acordava no meio da noite e, percebendo a luz por baixo da porta, entrava sem cerimônia no quarto para vê-lo manejar lápis de cor, tintas, pincéis e bastões de carvão com uma destreza de fazer gosto. Exultava, colada na habilidade e na ternura do tio, até porque, mesmo sendo muito tarde, ele não punha de volta na cama, nem dava pito. Então os dois ficavam ali, próximos, ele com certeza feliz com a companhia que dobrava um pouco a solidão de homem solteiro; ela, maravilhada com as coisas que iam surgindo sobre os papéis encorpados – Fabriano, Schoeller, Canson – feitos para receber, sem ondular, tanto o grafite quanto a umidade dos materiais de pintura.

Lidando com os estojos de guache e aquarela, ganhos em cada Natal e cada aniversário, foi com o tio, também, que a menina aprendeu a chegar a qualquer cor, em todas as nuances­ imagináveis, a partir do vermelho, do amarelo e do azul – cores primárias, como ele ensinava. O verde vinha do azul e do amarelo misturados; o laranja, do vermelho e do amarelo; o roxo, do vermelho e do azul: as secundárias. Isso, ela cansou de mostrar para os primos e para os amigos que reagiam invariavelmente do mesmo jeito: ou duvidando – fazendo pouco dela –, ou encantados. Não havia possibilidade intermediária. Muitas vezes era preciso partir para a demonstração prática senão, nada feito. E sempre que a menina revelava a alguém a dança das cores, vinha à cabeça dela a expressão doce daquele tio, ensinando tudo com paciência de Jó, fazendo ver que gostava tanto da companhia da menina quanto a menina gostava da companhia dele. 

Foi do tio, diga-se de passagem, que ouviu, pela primeira vez, que arroz branco não acrescenta nada à saúde ao contrário do arroz integral, rico em quase tudo. Só comia desse, sozinho, no almoço e no jantar, enquanto a mãe, o pai, a avó e ela própria se concentravam no branco sem querer provar do outro.

Era maníaco com cultura japonesa: lutava kendo; o chambre era um quimono cortado em tecido de estampa discreta, preto e branco; frequentava todos os restaurantes típicos da Liberdade, atrás de sushis e sukiyakis, pratos que no corrrer dos anos de 1940, 1950 e início de 1960 ficavam restritos à colônia japonesa e ainda não tinham se espraiado.

Um dia ele chegou do trabalho com uma boneca deslumbrante, quimono vermelho de seda lavrada, cabelos completamente lisos, bastos, pele alvíssima – dois olhos amendoados abertos nela –, sustentada por um suporte de madeira em laca negra mantendo-a em pé, numa ligeiríssima mesura, como só as japonesas sabem. Era boneca de enfeitar, não era para brincar. A menina pôs no quarto dela, em cima da cômoda, e ficou lindo.

Cada um dos adultos da casa tinha um estilo diferente de contar história. Os craques eram o pai e a avó. A mãe não sabia nenhuma de cor e nem inventava nada: só lia em voz alta. O tio, por sua vez, tinha o hábito de reproduzir a literatura que o impressionara na infância, como As aventuras do barão de Münchhausen, de que a menina gostava só mais ou menos porque o interesse dela, pelo tio, não repousava nas histórias.

No entanto, certo dia, ele misturou um tanto delas – o barão de Münchhausen e Don Quixote eram presenças nítidas – e começou uma série chamada A história do general Piropapivodas e de seu cavalo pedrês: uma verdadeira maravilha. A menina ficou completamente galvanizada e só queria saber daquilo, exigindo do tio um capítulo atrás do outro.

Aconteceu – por má sorte, a história em pleno curso – que, uma noite, ela se debateu muito num pesadelo, revirando de um lado para o outro em cima da caminha, assustadíssima. E por conta de algum gesto ou de alguma palavra solta durante a agitação, o pai ligou aquele mal-estar às aventuras do general Piropapivodas. Em vista disso, conversando no dia seguinte, os dois irmãos resolveram interromper a narração, para desespero da menina que insistia para o tio continuar, ele sempre dando um jeito de não atender, sem nenhuma desculpa convincente. A menina sofria!… O tio sempre tão bom, por que aquilo?! Ela ficava numa aflição, numa vontade de chorar! Dia após dia a mesma coisa, ela pedindo, pedindo muito e o tio, sorriso discreto, olhos baixos, mudando de assunto, com delicadeza. Até ela desistir de vez, mortificada, segura de que nunca mais na vida ouviria história igual à daquele general meio amalucado, solto no mundo atrás de aventura, montado no cavalo pedrês e seguido pelo escudeiro fiel, indo com o patrão para onde quer que ele fosse. 

A partir daí, a mãe, a avó e o tio, instruídos pelo pai, um doce tirano, passaram a contar à menina apenas histórias que não assustavam e tivessem final feliz, para ela não se excitar demais e sofrer, sacudida por pesadelos. Com isso, mostrando o melhor dos propósitos, o pai não fez senão dificultar à menina a convivência indispensável com a oposição entre as noções de bem e mal – luz e sombra –, próprias dos contos de fada e fundamentais para a organização emocional de qualquer um. 

Dessa forma, A história do general Piropapivodas e de seu cavalo pedrês, associada à lembrança querida do tio, permaneceu como a possibilidade perfeita da fantasia: inconclusa e suspensa na frequência caprichosa do tempo. 

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