Umberto Eco

Há exatos quarenta e seis anos, três jovens designers brasileiros, recém-saídos da universidade, partiram para um trecho do mundo rico – Suíça e norte da Itália – na intenção de conhecer algumas das personalidades que povoavam a fantasia de quem estava atento às realizações do design, naquele momento. Rodolfo Bonetto, Bruno Munari, Anton Stankowsky, Umberto Eco e Bob Noorda, da antiga Unimark Internacional de onde sairia Massimo Vignelli, para fazer carreira nos Estados Unidos. Como peregrinos à Terra Santa, os três viviam cada contato com o fervor dos devotos em busca da revelação. E tanto na Itália quanto na Suiça, experimentavam a sensação confortante de se sentirem integrados a uma atividade com lugar definido e espaço de expressão assegurado, circunstâncias até hoje ausentes do cotidiano profissional do designer brasileiro. Incrédulos, ouviam um intelectual da dimensão de Eco se referir a Glauber Rocha com o mesmo respeito e admiração com que se referia a Ettore Sottsass, visto como criador também genial, dono de uma das personalidades mais interessantes da Itália.

Neste momento, Glauber terminava, na Europa, O Leão de sete cabeças e Cabeças cortadas e seu prestígio internacional talvez jamais atingisse índices mais altos. O grande cineasta e o grande designer equiparados. Duas linguagens, duas maneiras originais de articulá-las. Os três meninos, entre excitados e céticos, se perguntavam quando, no Brasil, um intelectual de porte equivalente, trataria o design e suas realizações com o interesse e a deferência que Umberto Eco dava a Sottsass.

Quarenta e seis anos passados.

No Brasil, nem o design italiano nem o design suíço parecem atiçar mais a imaginação de estudantes e profissionais. Sempre reverente ao que se faz lá fora, o designer brasileiro substituiu seus modelos sem, no entanto, ter conseguido conquistar o interesse do público para o qual projeta e muito menos a compreensão dos agentes de quem costuma partir a demanda por seu trabalho.

Quarenta e seis anos.

O tempo aproximado em que a Identidade Corporativa japonesa partiu do zero para se transformar numa das formas de expressão gráfica mais vivas do planeta e, no Brasil, ninguém sabe direito o que é um designer nem para que serve.

Quarenta e seis anos passados.

Umberto Eco, moço ainda em 1970 e já bastante conhecido fora da Itália, onde parecia ter mais prestígio do que no próprio país, recebeu os meninos com uma cordialidade e um interesse raros em qualquer europeu. Principalmente se considerarmos que os três não passavam dos 24 anos e vinham da América Latina, naquele tempo, como acontece ainda, pouco respeitada culturalmente pelo mundo dito civilizado.

Os encontros foram longos e Eco manifestou, em ambos, numa irreverência condescendente, bem dele, conhecimento de certas constantes da cultura brasileira, vistas por nós como traços de indigência, saudados por ele como manifestações de grande originalidade. A tendência para inventar nomes próprios, por exemplo – Isarnildo, Ciliomar, Auni, Walney –, e o uso de sobrenomes ilustres, alguns carregados de estigmas duros de portar, alçados à categoria de prenomes: Washington, Hitler, Lincoln, Chauteaubriand, Edson. Saboreava cada um desses nomes destacando-lhes, deliciado, o som, sílaba por sílaba. E contrapunha a eles a obrigação italiana de identificar os seus por meio dos santos, ou de integrantes da cultura clássica, greco-romana e também da hebreia.

Outro traço brasileiro que fazia questão de acentuar, sempre na chave etnocêntrica que costuma votar ao diferente a benevolência de uma certa superioridade, era o interesse pelas religiões afro-brasileiras. Dizia não entender por que os intelectuais brasileiros ficavam se voltando tanto para a produção europeia, em qualquer área do saber, quando tinham à mão o mundo rico e complexo das mitologias africanas, nas suas várias acomodações a nosso país. Pura coquetterie, aos olhos dos três meninos que, justamente, insistiam em caminho inverso, seguros de estarem se enriquecendo no contato com o design suíço e italiano, praticados naquele período.

Quarenta e seis anos passados, morre Umberto Eco dias atrás, neste fevereiro de 2016.

Certo jornalista brasileiro, embevecido frente à aura ganha depois de O nome da rosa, comenta, no telejornal, o encontro cavado a muito custo numa Bienal de Frankfurt com o homem de difícil acesso, sarcasmo ferino, humor oscilante e pouca paciência. Nada, em resumo, que lembrasse o intelectual atencioso, verdadeiramente interessado naqueles jovens designers latino-americanos com os quais esteve longamente por duas vezes. Na própria casa, ou passeando-os por Milão para apresentá-los a um famoso bairro boêmio. Deixando no ar uma espécie de alerta: todos podemos ir nos desdobrando, ao longo da vida, em pessoas muitos diferentes umas das outras e nem sempre melhores do que éramos quando menos adiantados no trajeto rumo ao fim.

Leia também

O site da Ouro Sobre Azul utiliza cookies e tecnologias semelhantes para ajudar a oferecer uma experiência de uso mais rica e interessante.