Passando a manta

– 198 mil réis o boi.

– 200 mil réis…

– 198…

– 200…

– Assim não vai dar negócio: 200 é muito…

– É… não vai dar… 

Em vista do impasse, os dois homens se despediram depois de bom tempo num corpo a corpo verbal em que ninguém cedeu e acabou não levando a canto nenhum. Deixaram a boiada mastigando – lenta – o capim dos cochos, olhar triste perdido no horizonte. O comprador montou no cavalo e foi de volta para a cidade. O fazendeiro entrou em casa, esperando a noite cair para fechar a tarde que já ia alta.

Quando foi no dia seguinte, 5 da manhã, abrindo a janela do quarto e dando com a paisagem toda branca, num monólogo agoniado o fazendeiro disse para só ele escutar: 

– Como essa, nunca vi! E agora? E pasto para esse gado?

Corria o mês de junho no ano de 1918 quando, no sul de Minas e em São Paulo, caiu uma geada violenta, famosa pela intensidade, mantida anos a fio, com terror, na memória dos fazendeiros daquela região. Então, reconsiderando, num impulso de autodefesa, o dono da boiada esperou dar 7 horas – horário de abertura do centro telefônico – e chamou o outro que atendeu meio zonzo porque gente de cidade não costuma acordar cedo:

– Bom dia!

– Bom dia…

– Olhe, o senhor sabe, andei pensando melhor e resolvi voltar atrás na questão do preço para atender à sua necessidade…

– Podemos, então, ficar nos 198 mil réis?

– Vamos fazer assim: para que seja bom para os dois lados, fechamos em 199 por boi…

– Negócio feito.

Quando um ou dois dias depois o infeliz veio buscar a boiada, que já era dele, confessou sucumbido:

– Caso eu não tivesse empenhado a palavra ia era desfazer o negócio… Acertei antes de ver o castigo da geada campeando lá fora… Era muito de manhãzinha e só fui me inteirar uma ou duas horas depois do acerto…

– Pois é, eu também fiquei contristado, homem de Deus! Abrindo a janela, depois da nossa conversa e dando com o tamanho do estrago, pensei logo no senhor e senti um aperto no meio do peito: boiada tão bonita, preço tão bom e essa, agora: pastos todos secos!…

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