O meu coração
É só de Jesus
A minha alegria
É a santa cruz
A mocinha entoava, contrita, a música de péssima letra e pior melodia, todos os domingos na missa das oito – junto com as primas e as amigas –, antes de seguir para a piscina do clube começando o ritual que apenas teria fim depois da última sessão do cinema Odeon com suas três alternativas: filme de Hollywood, do neorrealismo italiano, ou comédia da Atlântida. Depois era certo varar a noite feliz, vencidas as três etapas habituais do último dia da semana, nas férias em Araraquara.
Vestida de branco
Ela apareceu
Ave, ave, ave, Maria
Ave, ave, ave, Maria
A mãe tinha comprado um véu muito simples para ela receber a comunhão, com um bordado mais discreto do que o bordado do véu das primas e das amigas. Mas ela gostava assim mesmo e era o que bastava, junto à cantoria, rezas e genuflexões, para sentir-se integrada ao ambiente rescendendo a incenso, com os dois coroinhas – turíbulos de lá para cá –, o tilintar dos sinos anunciando a eucaristia mais os adereços vistosos dos oficiantes.
A igreja era feíssima. Arquitetura de traçado pobre abrigando altares com santos e santas de massa colorida, expressões adocicadas, olhos postos no céu, num conjunto do mais perfeito mau gosto. A mocinha tinha exata noção da precariedade sem deixar que nada daquilo, no entanto, afetasse as conversas dela com a ideia que fazia do Criador, da Virgem Maria e do menino Jesus. Conversas compridas de que tirava grande proveito e conforto, num momento da existência em que se via imersa em pecado.
Já o ato da confissão era um tormento, aquela voz sem corpo dentro do confessionário escuro, perfeitamente enfadada, sem interesse nenhum pelo que ouvia e má vontade infinita em relação ao mundo laico, expressa nas perguntas mecânicas à pobre fiel de joelhos, antecedendo o fecho de sempre:
– Procure não pecar mais, minha filha: nem por atos nem por pensamento. Como penitência, reze dez padre nossos e quinze ave-marias. Deus te abençoe – completava a voz, dando sinal para que fosse embora, recebendo, em seguida, outra vítima sobre quem derramaria a mesma estreiteza de valores e de propósitos.
A mocinha saía da confissão invariavelmente arrasada e aquele encontro periódico, colidindo com todas as melhores expectativas que alimentava a respeito de si mesma, era mais funesto que benéfico, revirando-lhe o estômago num mal-estar profundo, agredida, como ficava, pelo comportamento daqueles padres medíocres, alçados, assim mesmo, à condição de guardiães do divino. Mas, sem passar por ali, nada de hóstia consagrada. Então ela enfrentava bravamente o suplício, odiando aquela antecâmera da redenção, indo atrás de uma frequência diferente na qual pudesse elevar, sossegada, o pensamento a Deus e a outros membros da corte celeste sentada à volta dele.
Bendito
Louvado seja
O-o sant-í-í-ssimo
Sacramento
Mas, fé religiosa ou se tem ou não se tem. Não é coisa para qualquer um e nem matéria que se ensine. Só quem consegue reter a presença do sagrado, convivendo com a calidez luminosa exalada por ele, poderá ascender à sensação que escapa à maioria de nós, pobres criaturas para lá de imperfeitas.
Pois com a mocinha não foi diferente.
Apesar da ligação com a avó – católica ardente e culta, leitora de Lacordaire, Bernanos, Simone Weil e Jacques Maritain, avó de quem ouviu, desde pequena, as histórias do Velho e do Novo Testamento habilmente misturadas aos contos de fadas –, a fé da mocinha não resistiu ao impacto do tempo mudando tudo por dentro dela. E a partir de certo ponto, não adiantava nem mesmo se pegar com as orações singelas que a haviam enternecido na infância:
Com Nossa Senhora me deito
Com o Menino Jesus me levanto
Com a graça de Deus
E do divino Espírito Santo
Não adiantava porque o estrago se abatera fragoroso de forma repentina, caindo violento, esgarçando a emoção de um golpe só, extremidades ligadas apenas por poucos fios – frágeis, frágeis –, na falta dos quais o rompimento, caso viesse, levaria a mocinha a um estado limite, onde razão e desrazão não se distinguiriam mais. No intervalo da crise – uma semana? duas? – agonia e fôlego escasso se fundiram na sensação de um naufrágio no espaço, aquele tanto de ar concentrado em cima barrando o caminho até Deus. Quanto mais o buscasse, mais era certo Ele escapar. A mocinha tentava subir sempre mas, em sua infinita impiedade, Ele se afastava, inatingível. Dias e dias, no roldão do esforço, ela se debateu na busca de cada atalho possível, sem resultado nenhum. Até, por fim, entregar os pontos, exausta, desistindo d’Ele que foi embora para nunca mais. Não sem antes deixar claro que, a ela, não tocaria fazer parte do rebanho eleito pela divina escolha. Rebanho apascentado na fé verdadeira, distante da macaqueação universal que só faz explorá-la, contaminando-a com os desvios inerentes às piores formas de prática do poder.
Então, sem Deus e perdida a infância, não restou à mocinha outro remédio senão seguir – asa quebrada – atrás do que pudesse ajudá-la a dar conta do permanente desassossego, companhia fiel que passou, dali em diante, a ir com ela a todo e qualquer lugar para onde dirigisse o passo.