João Rio Verde

O menino brincava na calçada quando viu, do outro lado da praça, em frente à casa dele, quatro soldados a cavalo levando uma escada coberta por um lençol ensanguentado. Em cima da escada – embaixo do lençol – ia estendido o João Rio Verde, jagunço famoso na região: tinha acabado de matar alguém a mando do coronel padrinho dele.

Aconteceu que justo naquela manhã, carregando muita morte nas costas, o infeliz se viu presa de uma emboscada, sendo crivado pelas balas arremetidas dos dois lados de uma estradinha por onde ia fugindo. E o menino se inteirou do assunto bem na hora em que estavam levando o ferido para a prisão – mais morto que vivo – numa cidadezinha de Minas, no ano de 1924. Passado o susto e passada a caravana, percebendo certa movimentação dentro de casa, correu para lá e viu o pai – médico – sair às pressas depois de arrumar os instrumentos na maleta.

– Onde ele está indo?

– Vai fazer o exame do corpo de delito, disse a mãe.

Guiado pela intuição, chegou no sentido daquela resposta. Dias depois, os adultos comentaram e o menino ouviu que, na cadeia, o pai tinha examinado o jagunço e as muitas chagas cheias com os balaços espalhados pelo corpo dele, tendo declarado às autoridades que o preso não podia ficar ali de jeito nenhum: se ficasse era certo morrer em pouco tempo. Então transferiram o João Rio Verde para a Santa Casa onde o pai assistiu o infeliz, dia a dia, até curá-lo.

Restabelecido, depois de bom estirão, o jagunço ia de volta cumprir a pena na cadeia quando a notícia se espalhou pela cidade pequena, atiçando um grupo raivoso que se ajuntou na porta do prédio para linchá-lo na saída.

Foi quando um magote de gente buscou, apavorado, a casa do menino para avisar o doutor – que havia sido compassivo com João Rio Verde ganhando a confiança dele –, estar formado um grupo munido de paus, pedras, rastelos, enxadas e mais instrumentos duros, bem na porta da Santa Casa, exigindo fosse entregue o preso para a justiça furiosa deles. Expressão desmanchada – colérica –, olhos soltando chispas, troncos e membros crispados, cada qual em torno da improvisação da própria arma, os homens – porque eram todos homens –, praguejavam ameaçadores, urrando despropósitos para intimidar os funcionários e abrir caminho até o jagunço, dentro da Santa Casa.

Chegando, foi esse o quadro com que deu o pai do menino, depois de sair às pressas de casa, na tentativa de evitar o desastre. O doutor era pequeno, magro, andava sempre muito bem-posto e a fala plácida, as maneiras elegantes, a coragem, nunca lhe faltaram pela vida afora, em nenhuma situação. Além do mais, e isso contava, era filho de um coronel destacado na cidade e, naquele tempo, o sentido da hierarquia social se impunha de um jeito como hoje não se impõe mais. Provavelmente, além da origem, tudo na figura dele contribuía para cobrar respeito de uma turba como aquela, composta, na maioria, por gente, rude e modesta.

Então, postado com firmeza entre a exaltação e a porta do prédio, foi conversando, convencendo, acalmando até aplacar os ânimos por completo e fazer com que, aos poucos, todos se dispersassem e o jagunço pudesse deixar a Santa Casa e seguir com segurança até a prisão.

Em vista disso pode se dizer que, por duas vezes seguidas, o doutor barrou a morte do João Rio Verde, que cumpriu a pena e deve ter deixado a cadeia antes do tempo, beneficiado por bom comportamento. O fato é que, cerca de quatro anos depois, em 1928, o menino, já com 10 anos, estava mexendo nos livros dele num cômodo da casa com janela dando para a rua, quando um rapaz – jovem ainda, simpático, negro, bem-vestido, em cima de um cavalo arreado com apuro – bateu palmas para se anunciar. O menino atendeu, no que o outro, sempre risonho, cumprimentou:

– Bom dia, mocinho, seu pai está em casa?

– Está…

– Pode chamar? Diz que é o João Rio Verde…

O menino, lembrando do acontecido poucos anos antes, sentiu um calafrio tomá-lo da cabeça aos pés e foi correndo avisar o pai, que saiu para ter com o rapaz.

E mais o menino não soube até muito para frente quando contaram que o João Rio Verde tinha feito um trato com a santa: se sarasse, iria até a igreja dela, longe dali, levar uma fotografia tirada junto com o doutor, pagando promessa no caso de vencer as feridas e o tempo na prisão.

Assim é que, até hoje, essa foto – com certeza suja e desmaiada por causa do tanto de tempo que se passou – deve resistir na parede de algum santuário, mostrando lado a lado o doutor branco, distinto, elegante e seu paciente, negro, jovem e naquela mesma estica com que apareceu ao menino na porta da casa dele, quatro anos depois de ter sido levado – semimorto – para cumprir pena, em certa prisão acanhada de uma cidadezinha do interior.

Leia também

O site da Ouro Sobre Azul utiliza cookies e tecnologias semelhantes para ajudar a oferecer uma experiência de uso mais rica e interessante.