Tempos atrás, um jornalista em busca de reforço para determinada matéria, tentava extrair de seu entrevistado a confirmação da tese segundo a qual as editoras brasileiras vinham oferecendo ao público um livro desnecessariamente caro e cuidado além da conta em seus aspectos gráficos. A crítica dele se voltava, na verdade, para a produção de uma empresa específica que, anos a fio, trouxe ao mercado produtos de excelente qualidade visual, deixando sua marca mesmo depois de extinta, fato infelizmente ocorrido há pouco.
Como acontece nessas entrevistas feitas por telefone, o jornalista estava atrás de uma opinião esquemática sobre o assunto, uma opinião que pudesse confirmar certo ponto de vista, previamente definido, em torno do qual pretendia construir um artigo para o jornal diário em que trabalhava.
Aconteceu, para mal dos pecados do jornalista, ter topado com um entrevistado que, sendo designer, além de editor, tinha enfoque diferente sobre o mesmo assunto, filtrado pela condição de projetista industrial. E para qualquer projetista industrial, formado na boa escola na qual o design é entendido como matéria de relevância, tendo por objetos principais o bem-estar e a informação de homens e mulheres na vida em sociedade, a trajetória dos produtos deve ser avaliada com critério e apenas depois de pesadas as condições em que foram concebidos, fabricados e distribuídos no contexto de seus respectivos mercados.
– Antes de mais nada – reagia o entrevistado, contrariando a expectativa do entrevistador –, talvez se deva evitar juízos severos acerca desse ou daquele setor da indústria, de maneira geral, das editoras de livros, em particular, atribuindo unicamente a elas a responsabilidade por alguns aspectos realmente problemáticos, diga-se de passagem, dos produtos que trazem a público. A indústria de bens não duráveis, nos atendo a ela, dança conforme a música tocada pelo segmento em que atua. Sendo assim, por que os editores brasileiros deveriam ser vistos com desconfiança pelo fato de estar fazendo livros cada vez mais bem editados, projetados e fabricados para o público reduzido com que sempre contaram, por razões que lhes foge inteiramente à responsabilidade e controle? O que adiantaria fabricar livros baratos em papel poroso, sem nenhuma imagem e com capas desinteressantes? Isso interferiria, por acaso, na tiragem usual dos 3 mil exemplares, número em grande parte responsável pelo preço elevado do livro brasileiro? Aumentaria o contingente do público leitor? Num país onde cerca de 13 milhões de indivíduos são analfabetos funcionais, onde a leitura nunca chegou a ser hábito e o número de livrarias é irrisório, onde o poder aquisitivo, de maneira geral, vem sendo corroído e programas humorísticos que sempre contaram com grande audiência – anos atrás, pelo rádio, agora pela televisão – ridicularizam o ensino, o professor, o estudo e a convivência em sala de aula, como exigir dos editores que extirpem, sozinhos, vícios tão arraigados, há tanto tempo? Por isso, não me parecem justas certas críticas ao setor, na medida em que ele reproduz, na sua prática, distorções tradicionalmente presentes na sociedade brasileira. Distorções que se cristalizaram tanto na concentração de capital em poucas mãos, quanto nos obstáculos impostos a um grupo numerosíssimo de brasileiros, impedindo-os de usufruir benefícios indispensáveis à construção da personalidade e da cidadania. Distorções, por outro lado, que acabam condenando nosso produto industrial a tiragens muito menores do que o alcance da tecnologia deslocada para sua fabricação, encarecendo, como já foi dito, a ele e ao processo que lhe dá origem. Livros, no Brasil, sempre foram feitos para a minoria privilegiada dos que conseguem se instruir, desenvolver o hábito da leitura e meios de arcar com ele.
– Mas, voltando à nossa questão – tentou o jornalista, meio contrafeito por não estar tendo eco para seu ponto de vista –, por que editar livros de texto em capa dura?
– Porque a capa dura tem a função de sustentar miolos pesados ou de grandes dimensões, de maneira a evitar que os livros se desconstruam nas mãos dos leitores. Uma brochura pode não ser a melhor solução para um texto muito volumoso ou que precise de manuseio constante e intenso– rebateu mais uma vez o designer.
– Mas essa razão é técnica –, tentou ainda o jornalista, sentindo que a conversa escapava para uma direção que ele não previra. – Seria a necessidade técnica causa suficiente para a escolha de um processo de fabricação caro?
– E por que não? – insistiu o designer. É verdade que, em certas ocasiões, o editor quer ou precisa valorizar seu produto com um acabamento mais nobre como a capa dura, por exemplo. Por que uma decisão como essa deveria ser censurada?
– E o papel? – continuou o jornalista, buscando a confirmação de sua tese, agora noutra frente. – Por que os livros brasileiros têm sido feitos com papel de tanta qualidade?
– Papel, como você sabe, é um dos fatores que mais pesam no preço do livro. Frequentemente é vantajoso comprar uma grande partida de qualidade superior, própria para impressão de imagens, por exemplo, e usá-la, também, em livros de texto que poderiam estar sendo fabricados com um material de superfície mais áspera e absorvente. É dessas situações em que o caro sai barato, com ganho para o leitor.
– Sei… – soltou o jornalista pouco convencido, sempre assombrado pela mesma sorte de ideias, querendo, a todo custo, confirmá-las –, e a que outras circunstâncias se devem o alto preço e o excesso de capricho gráfico do livro atualmente fabricado no Brasil? À tecnologia?
– Talvez, se a gente entender tecnologia como o conjunto formado pelas características da mão de obra necessária à execução de um produto, por determinados processos, mais os recursos e limites, próprios desses processos.
– Estou pensando nas máquinas, não em gente… – rebateu o jornalista.
– Eu compreendi – continuou o designer, arriscando, quem sabe, um tom didático demais para a ocasião –, mas vamos tentar algumas distinções para esclarecer o que me parece deva ser entendido por tecnologia, ainda que de forma simplificada. O maquinário para impressão e acabamento de livros, com o qual se conta hoje nas boas gráficas brasileiras, equivale ao que de melhor se dispõe em qualquer lugar do mundo. Mas, convenhamos, um produto industrial não é resultado, apenas, da ação mecânica e, no caso do livro, a cota de interferência humana é decisiva em todas as etapas: concepção editorial, concepção gráfica e fabricação. Generalizando, nesse processo, costuma se reproduzir no Brasil a mesma ordem de fatores que caracteriza alguns aspectos da dinâmica de nossa sociedade. Ou seja, elites preparadas, aptas a criar com competência, assistidas por um aparato técnico de última geração, ou quase, operado por mão de obra mal paga e apenas razoavelmente treinada. Na minha maneira de ver, mais do que a tecnologia, como um todo, tem sido a ação individual do designer o fator decisivo para o aumento da qualidade do livro brasileiro.
– Do designer?– reagiu o entrevistador.
– É.
– Mas, por quê? – e o jornalista se desapontava mais uma vez, percebendo estar se afastando, e muito, da tese inicial de que as editoras brasileiras estavam tendendo a fazer livros caros. Tese para qual queria, apenas, a aquiescência do entrevistado, não a discussão ponto por ponto de seus argumentos.
E veio a resposta:
– Porque num mercado estreito, em eterna dificuldade e onde, em consequência, a remuneração para quem vive dele é pouca, as editoras brasileiras vêm fazendo um dos mais belos livros do mundo. Tanto de leitura corrente, quanto de referência ou ilustrados. Isso, graças à ação de designers capazes, que se voltaram com empenho e interesse para um segmento que tem sabido se beneficiar de sua expertise, de uns 30 anos para cá. Ao contrário de outros, também integrantes do tecido produtivo brasileiro, que têm manifestado em relação à atividade, como norma, o mais solene desinteresse, provavelmente por falta de informação acerca de seu potencial. Com a agravante de que, pouco a pouco, o design gráfico passou a ser ensinado e oferecido, em nossos país, como uma espécie de técnica privilegiada de vendas, como um parente sofisticado tanto do marketing quanto da publicidade. Não como o instrumento de projeto e planejamento que realmente é, essencial para a configuração de um mercado forte e competitivo tanto no plano interno quanto externo. Não haverá de ser com técnicas de venda que um mau produto irá se afirmar nem aqui dentro, nem lá fora, você concorda? – perguntou mais uma vez o designer ao jornalista.
– Quer dizer – insistiu o entrevistador, sem responder à pergunta – que, na sua opinião, nos últimos 30 anos a indústria do livro, no Brasil, operou uma mudança qualitativa porque entendeu a importância do design no interior do processo de concepção e fabricação do produto?
– Exatamente. Se mais uma meia dúzia de setores da indústria de bens não duráveis se abrissem para o design, como a indústria do livro se abriu, talvez pudesse ser operada, em pouco tempo e progressivamente, uma transformação estrutural no produto brasileiro, no mercado, na mentalidade de quem o fabrica, distribui e compra, com ganho para todos. Como aconteceu, por exemplo, com a Itália no pós-guerra, a partir de 1946, e com o Japão, para lembrar apenas dois casos emblemáticos.
– Sei… Então está bem… Muito obrigado pelo tempo que você me deu – e o entrevistador se despediu, deixando inconclusa a tese, por absoluta falta de argumentos para sustentá-la.
– Não tem de quê. E por favor, me desculpe. Parece que contrariei sua expectativa: você queria uma coisa e acabei vindo com outra…
– Tudo bem… Já estou acostumado…