O pai da menina tinha um amigo que gostava muito dele.
Escritor, bem mais velho, passara boa parte da vida desancando Deus e o mundo pelos jornais em disputas de toda sorte – não apenas literárias –, fazendo desafetos a torto e a direito por conta da contundência de uma argumentação que muito frequentemente chegava às raias da crueldade. Era autor de uma obra brilhante, inovadora e irregular, parte iconoclasta, parte convencional e fora um dos chefes do movimento modernista que sacudiu São Paulo – e o Brasil, com ele – a partir da Semana de Arte Moderna, nos anos vinte do século passado.
No correr do tempo acabou perdendo o muito dinheiro que tinha herdado, o ímpeto demolidor, a irrefreável belicosidade e, no fim de 1940, momento desta história, não passava de um senhor pacato, doce, casado com mulher muitíssimo mais moça que lhe deu um casal de filhos. Tinha tido outros dois, de ligações anteriores, e estava empenhado em conseguir, para o mais velho, uma colocação que lhe cobrisse as necessidades próprias de um jovem chefe de família.
Então como é hábito na burguesia brasileira – na média e na alta –, o escritor voltou-se para os amigos e conhecidos buscando, entre os mais bem situados, alguma coisa para atender ao primogênito, que ele queria ver dirigindo uma rica fundação cultural. E para agradar à viúva do milionário, que na morte do marido recebera a dita fundação junto com inumeráveis outros bens, passou a cumulá-la de atenções e gentilezas para ver se o emprego saía como era seu desejo e conveniência do filho.
Nesse esforço, empenhado em fazer sala, certo fim de tarde apareceu querendo levar o pai e a mãe da menina para jantar com ele e a mulher, a convite da tal senhora. Mas eis que surge um impedimento: o casal, moço ainda, começando apenas a entrar na casa dos trinta, não tinha com quem deixar a filha pequena.
– Tragam ela! – resolveu o escritor que, além de verdadeiramente decidido a apresentar os amigos à viúva, era muito mandão e talvez estivesse achando que a presença e a conversa agradável deles pudesse ajudá-lo na embaixada a que estava dedicado.
Os dois hesitaram um pouco, mesmo porque sabiam bem do que a menina era capaz em matéria de inconveniências, mas acabaram cedendo, vencidos pela insistência, e lá se foram o pai, a mãe e a filha com o escritor mais a mulher, todos embandeirados para a casa da senhora rica. Casa, maneira de dizer: tratava-se de um palacete e a menina, nessa altura com seus cinco anos, ficou completamente maravilhada ante o desdobramento das salas, salões e salinhas, a riqueza dos móveis, a profusão de objetos enfeitados, cintilantes e coloridos, sem falar nos óleos, aquarelas, guaches e gravuras dos mais variados estilos e tamanhos, cobrindo as paredes de alto a baixo.
Em matéria de cor, indo além do ambiente, só mesmo a dona da casa, senhora francesa, português pífio apesar dos muitos anos de Brasil, cabelos vermelhíssimos, curtos, cuidadosamente encaracolados e batom num carmim de vivacidade espantosa desenhando, no rosto dela, outra boca por cima da boca.
Roupas e joias reproduzindo a ênfase cromática do ambiente, a senhora reinava sentada no centro de um sofá estofado num veludo vermelho-escuro, quase grená, onde devia estar habituada a receber homenagens e deferências, como as inúmeras provavelmente prestadas pelo escritor naquele começo de noite.
A menina estava em êxtase. Perambulava, olhos arregalados, examinando tudo, completamente desligada da conversa dos adultos, fazendo um levantamento minucioso, canto por canto, com demorada atenção e, no fim do reconhecimento, não tendo encontrado nenhuma criança para brincar, acabou descobrindo o caminho da cozinha onde, em pouquíssimo tempo, fez camaradagem com todos os inúmeros empregados. E foi ficando por lá até que vieram chamá-la para ir para a mesa com a dona da casa e os convidados dela.
A menina aguentou firme o jantar quase inteiro, portou-se bem mas não via a hora, depois de ter comido pouco, como sempre, de correr para a cozinha e continuar a conversa com os amigos recentes. Como acabou fazendo, assim que deram licença.
Então a mãe contava que, a partir dali, todos ainda sentados, na altura da sobremesa, começou a vir da cozinha, pegada à sala de jantar, um encadeamento incontido de gargalhadas para preocupação dela e do marido, já bastante inquietos com os desdobramentos possíveis daquilo.
A dona da casa, o escritor e a mulher, por sua vez, começavam a mostrar certo desconforto com a balbúrdia quando, num ímpeto, a menina abre a porta e entra triunfante sala de jantar adentro revigorada pela acolhida carinhosa dos serviçais. O copeiro veio junto para acabar de servir: panca de lorde inglês, todo enfarpelado, preto da cabeça aos pés menos na camisa branca, ajustada ao pescoço pela gravata de nó impecável, Aí a menina, ar perigosamente abusado antecedendo o desastre, soltou com vivacidade apontando o copeiro, àquela altura, já amigo do peito e movendo-se pressuroso por ali numa proximidade que a encorajava:
– Não sei por que ele fica de pé, só servindo! Devia era estar sentado na mesa: é o mais bem-vestido de todos!
Os pais lembravam da expressão contorcida do copeiro, cortando um doze para reter o riso, absolutamente impensável numa circunstância daquelas. A dona da casa não moveu um músculo, mantendo a expressão fechada. O próprio escritor, irreverentíssimo ao longo da maior parte da vida, ficou ligeiramente contrafeito com a performance, ao perceber que a milionária não tinha achado graça nenhuma na semostração daquela menina passada um pouco da conta.
Então, a frase de sempre, dita com severidade, em geral pela mãe, com a qual já estava habituada:
– O que é isso, menina?!!! – ferindo-a invariavelmente porque ela nunca conseguia entender a razão do pito.
Mas, naquela noite foi diferente.
Entendeu direitinho e nem se importou: a amizade com o copeiro – homem tão distinto e elegante–, com os outros empregados e a peregrinação pelo palecete tinham valido mais. Por isso ela não estava ligando nem um pouco, mesmo a mãe tendo chamado a atenção na frente de todo mundo.